30 de março de 2008

Cunhado

Quem muito a conhecia sabia que ela estava com um olho na irmã e outro no cunhado. A irmã estava no caixão. O cunhado, ao lado, ao lado do caixão, velando a esposa. Ou ex-esposa, como agora ela fazia questão de pensar. Na verdade, há muito ela gostaria de pensar assim. Contudo, não esperava que fosse nessas condições: vela, velório e caixão. Ela, vestida de preto, sentada ao lado da irmã, da irmã morta. Um olho nela, um olho no cunhado. No ex-cunhado. Ele, também de preto, estava em pé. Em pé, do outro lado do caixão e com os dois olhos nele. Todo mundo podia ver que o mais novo viúvo da cidade estava chorando as lágrimas que tinha e as que não tinha, em um sofrimento que dava dó até mesmo nas pessoas acostumadas com os sofrimentos alheios. Ela, por sua vez, também não deixava dúvidas sobre os seus sentimentos: um olho na irmã, outro olho no cunhado. No ex-cunhado. Todos da cidade – até mesmo os mortos da família, inclusive a que estava de corpo presente – sabiam ou desconfiavam que ela era louca por ele. Louca mesmo. Desejava-o desde que o vira pela primeira vez e antes mesmo de a sua falecida irmã o conhecer. Conhecera-o e apaixonara-se primeiro, mas não pudera se lhe declarar. Quando estava a ponto de fazê-lo, a irmã já o namorava. Não por maldade, nem por descaso para com os seus sentimentos. Apenas e simplesmente por que as duas não conversavam sobre sentimentos. Eram irmãs, mas não confidentes. Nem mesmo mais tarde, quando começou a pairar no ar a desconfiança familiar de que a cunhada era apaixonada pelo cunhado, as duas trocaram qualquer palavra sobre o assunto. Tocaram as suas vidas sem dar maiores pistas sobre o que pensavam uma da outra e daquela situação – ora verossímel, ora verdadeira. De qualquer maneira, todas as possíveis dúvidas que existiam sobre o teor dos seus sentimentos foram, de uma hora para outra, dissipadas quando ela se levantou, apoiou as duas mãos na borda do caixão e, por sobre o corpo da falecida irmã, disse ao ex-cunhado:

- Lembro-me do dia em que lhe conheci e também do dia em que lhe roubaram de mim. Não que soubessem, mas também não que se importassem. A vida quis que minha irmã estivesse a minha frente, porém, e estranhamente, agora quer que ela esteja abaixo de mim. Outra fatalidade substituiu a fatalidade que nos separou – e pela porta que se abriu agora posso entrar em sua vida. Tenho em mim todo o amor que você perdeu e que agora gela abaixo de nós. Eu consigo lhe enxergar sendo tudo o que existe. Você é a perfeição, ou, então, é o seu símbolo – e também toda a beleza que eu sinto no universo das maiores maravilhas. Sua vida é o sonho que os anjos fantasiam e sua boca sopra o vento que os deuses aproveitam. Se talvez eu fosse um deles, ou se deuses não existissem, e, assim, eu não tivesse que, então, ser tão perfeita... Não espero que eu mereça ser a dona do universo – se eu sou um ponto nele, você é o infinito. Mas espero pelo dia em que todos os caminhos se encontrem e lhe façam enxergar que existo nesse mundo. Por que é que não me olha? O que há de tão ruim? Não mereço uma chance? Por que tem que ser assim? Olha um pouco a sua volta e enxerga a realidade – sou a única, agora sabe, que lhe ama de verdade. Qual, então, é o problema? O que há de tão errado? Não consegue se enxergar nem um pouco ao meu lado? Pense um pouco e me diga - o que há de tão errado? O que é que nos impede de vivermos lado a lado? Tenho visto a eternidade dar seus passos infinitos... quanto tempo ainda temos? Quantas vidas necessito?

Os presentes diriam que até a morta ficou sem saber o que fazer.

28 de março de 2008

Acabar

Oh Tristeza, minha amiga,
por favor, reflita e diga
por que queres me deixar?

Por que deixas teu amigo?
Quando não estou contigo
quase posso me alegrar...

“Onde vais que não responde?”
Oh Tristeza vais aonde?
Ouça amiga - não, não vá!

Mas se a ida é irreversível,
oh amiga, se possível,
deixe assim o seu lugar...

Foram tantas as mudanças
da tristeza à esperança
que cansei-me de mudar:

como o ferro não aguenta
(estica/encolhe e arrebenta)
eu também posso acabar.

25 de março de 2008

Rosa

Detestam-te as mulheres invejosas,
as loucas, indecentes, desvairadas,
as santas, meretrizes, corajosas
e as tantas solitárias namoradas.

Desejam-te os notáveis cavalheiros,
os pobres, promissores, milionários,
os músicos, poetas, engenheiros
e os muitos desposados solitários.

Dispensam-te os malucos infelizes,
narcisos, insensatos, insensíveis,
os tantos de esperanças desalmadas;

inspiram-se letristas e escritores,
artistas, desenhistas e escultores,
nas tantas formas tuas lapidadas.

19 de março de 2008

Alma

Tinha um pensamento fixo: "nada é tão ruim que não possa ficar pior, nada é tão ruim que não possa ficar pior, nada é tão ruim que não possa ficar pior!". Seu desespero era gigantesco e tal pensamento era o que tinha de mais positivo em sua mente. Mas foi suficiente. Se nada era tão ruim que não pudesse ficar pior, pelo menos ainda não tinham tampado o poço fundo, escuro e frio no qual se encontrava. Isso seria pior. Para o bem ou para o mal, comprovou que possuía uma grande capacidade de relativização das coisas e, ainda que sentindo como era triste e lastimável a sua situação, conseguiu enxergar o lado bom das tragédias pessoais pelas quais estava passando. Até surpreendeu-se quando se pegou admirado com a vida e a sua incrível capacidade de reinvenção de si mesma, aquela estória de que quando Deus fecha uma porta, abre uma janela. Não sabia exatamente o que fazer e nem por onde começar, mas, se nada era tão ruim que não pudesse ficar pior, provavelmente nenhuma esperança era tão pequena que também não pudesse ficar maior. Assim, ainda que machucado e enfraquecido, às vezes revoltado, às vezes conformado, sentiu que mudanças importantes haviam começado a ocorrer em um lugar que somente o fundo do poço foi capaz de lhe mostrar: o seu interior, o seu próprio eu, a sua própria alma - a única e indestrutível janela com a qual poderia contar.

15 de março de 2008

Uma estrela

Uma estrela me seguindo,
lá vem ela, lá vem vindo,
vem piscando, vem - não indo -
reluzente reluzindo.
Vem brilhando bem mais forte
- traz a vida ou traz a morte?
Vem piscando me assustando
- traz o azar ou traz a sorte?
Por que segue-me essa estrela?
Não sou brilho que lhe atrai!
Levo o brilho, pelas costas,
dessa estrela que não cai.
Quanta estrela tem o céu,
quanto brilho tem aquela!
Me persegue o brilho forte
- vela, vela, vela, vela.
Bela estrela...quanta luz
nesse brilho que me segue!
Essa estrela a que me opus
- pra que o brilho não me cegue -
traz, pesada, junto à luz
algo que me diz: “Não peque”.
Junto à luz, a luz da Cruz
- sou Jesus, Jesus, Jesus.

13 de março de 2008

Ilusões, desilusões

Ilusões, desilusões
Fossem mil meus corações
Mesmo assim não haveria

Tanto espaço no meu ser
para o mais e mais sofrer
que a vida me traria

Ilusões, desilusões
Fossem mil meus corações
Mesmo assim não caberia

Em meu peito toda a dor
que da vida, que do amor,
que dos céus eu ganharia

Ilusões, desilusões
Fossem mil meus corações
Até sei como seria!

Mais dilemas, mais amores
Mais angústias, mais as dores...
...nada, nada mudaria!

Saudade

Saudade é o que sentimos quando roubam nosso coração, o ladrão é pego em flagrante, mas não vive preso com a gente.

De nós

A vida exige que façamos isso
que façamos aquilo
mas como fazer isso
e/ou aquilo
sem saber o que fazer de isso
de aquilo
e, principalmente,
de nós?

9 de março de 2008

Mentindo


O que vejo, o que sinto
nada tem algum sentido
mente a vida ou eu minto
(mas alguém está mentindo)
as pessoas são estranhas
e eu mesmo não me entendo
as tristezas são tamanhas
(estarei enlouquecendo?)

8 de março de 2008

Madalena

Eu não sei se você lembra... lembra?
Eu passava em procissão.
Lhe atiravam pedregulhos, duros!
Não tardava a morte não.

Invejavam-lhe os cabelos, pêlos,
as mulheres de razão.
E lançavam-lhe desejos, pejos,
mas Jesus lançou-lhe a mão:

"Considero-lhes impuros,
puros consideram-se porém,
mas se ofertam pedregulhos, duros,
a Deus Pai ferem também!"

Eu não sei se você lembra... lembra?
Levantaram-lhe do chão.
Desarmaram-se das pedras, pedras...
Foi-se embora a procissão.

És


És os mares condensados
numa gota simplesmente.
És os ares comprimidos
num só átomo existente.
Tens o rastro do infinito
e do sol és a nascente...
...és, no tempo, a eternidade
e o amor que ninguém sente.

7 de março de 2008

O que procuro

Quanto mais eu te procuro
mais eu penso em desistir
- é que andando sob o escuro
não sei bem o que seguir.
Não há pista que me guie,
não há luz que me aponte
nem alguém em quem me fie
- começar...nem sei por onde!
Eu não sei se, realmente,
é possível te encontrar;
se não for, infelizmente,
o que mais vou procurar?
Já pensei "será que existe
quem eu vivo procurando?"
"Quem procura, quem insiste,
sempre acaba se encontrando".
O que os olhos não enxergam
não conseguem encontrar
( passo a vida procurando
um lugar pra me matar)
Quanto mais eu te procuro,
mais eu penso em desistir
- é que andando sob o escuro
não sei bem o que seguir.

6 de março de 2008

Milionésimo

Puxou o gatilho. No milionésimo de segundo que se seguiu, lembrou-se de cada boca já beijada e de cada corpo sobre o qual já havia deitado o seu não tão desejável próprio corpo. Mas não havia mais tempo. Pela primeira vez, conseguiu não arrepender-se de uma decisão tomada. E nem havia como.

5 de março de 2008

Último soneto

Descansam, meu Senhor, sobre o Teu peito,
as asas do meu amor, meu pensamento...
Enquanto eu por aqui procuro um leito,
descansa em colo Teu meu desalento.

Amei, sabe o Senhor, descontrolado,
e amei com todo o corpo a coisa amada,
e a mente, ah como amou, despreocupada,
o amor que o coração tornara amado!

Agora, oh meu Senhor, busco em meu quarto
um leito - eu vou sozinho, agora eu parto -
e enfim, peço ao Senhor que apenas chame

a mim - que apenas quero senão amar-Te,
e assim, que o coração morra de enfarte,
e a mente, inconsequente, de derrame.

Desde sempre

Nasce o dia...não demoro a sentir
mil tristezas e angústias no meu ser.
Desde sempre, veja só, não vou mentir...
...sofro assim e não consigo me entender.
Todos dizem que a vida me sorri
e que tudo o que importa eu possuo!
Que tristeza verdadeira eu nunca vi
e que tudo o que importa eu destruo!
Meus amigos e pessoas que eu amo
se esforçam em mostrar-me um caminho
em que eu possa percorrer me encontrando
e deixando de viver triste e sozinho!
Mas as ruas e estradas que percorro
nada dão-me a não ser desesperança!
E por mais que muitos venham em socorro...
...eu não sinto que a alegria me alcança!
Faz um tempo que procuro explicação
para todos os meus tristes sentimentos
- e parece que o meu pobre coração
têm respostas para todos os tormentos,
as angústias, os dilemas e a dor
que ocupam e afetam minha vida
- essa coisa sem sentido e sem cor,
absurda e muitas vezes dolorida.
Tive sonhos, esperanças e desejos
- tantos quantos a ilusão podia dar-me -
mas as dores, frustrações e pesadelos
conseguiram, sem querer, desanimar-me.
Passo os olhos pelas coisas desse mundo
e não vejo qualquer coisa interessante
- nem amores, nem qualquer outro assunto!
Por que devo, por que devo ir adiante?

4 de março de 2008

Sem essência

Não me importa se me entendo,
não me importa se me ouço,
eu espero, pelo menos,
não estar ficando louco
- apesar de estar achando
mais provável que esteja
( eu acabo me matando
antes mesmo que eu me esqueça)
Sou eu mesmo quem tortura
minha pobre existência
- sou disforme, sem desenho,
sou vazio e sem essência.

Reversos

Pois são meus dias, senão dias, senão versos
- entrelaçados decassílabos reversos -
naturalmente idealísticos nostálgicos
em consonância a moderníssimos defeitos.

Pois são meus dias senão versos destilados
- inconsequentes desatinos impensados -
entre a tristeza e da tristeza à desventura,
entre a loucura e da loucura ao desespero.

Entre a loucura e da loucura ao desespero,
entre a tristeza e da tristeza à desventura,
inconsequentes desatinos impensados
- pois são meus dias senão versos destilados.

Em consonância a moderníssimos defeitos,
naturalmente idealísticos nostálgicos,
entrelaçados decassílabos reversos
pois são meus dias, senão dias, senão versos.

Presente

Escrevo à noite e quando durmo estou pensando
e te lembrando enquanto penso o sono espanto:
dói-me a cabeça, o corpo sente em se cansando,
explodem dores que torturam-me, dói tanto!

Espero o dia, o sol levanta-se às claras,
mas vou versando-te com luzes de uma vela:
meus olhos fecham-se se chego em vezes raras
à claridão que rompe as frestas da janela.

Em versos longos de cadência calculada
busco rimar-te à perfeição que dá-te forma...
...mas imperfeitos são meus versos, quase nada:
somente Deus com versos santos te contorna.

Nesse entretempo que separa as duas noites,
naturalmente me tortura a Natureza:
meu coração se bate apanha desse açoite
e se respiro inspiro os ares da tristeza.

O tempo logo o tempo, tempo, tempo, passa
e chega o tempo de mostrar-te o meu presente;
te encontro enfim, mas ouço assim com ar de graça:
"Estou com pressa. Eu sinto muito, infelizmente..."

3 de março de 2008

O que posso esperar?

Quase já não há estrelas
no imenso céu vazio
que existia como um lenço
a cobrir as nossas vidas
Mesmo as últimas estrelas
existentes no espaço
já não são observadas
- não há olhos para elas
O vazio onipresente
cheio apenas de lembranças
torna tudo insuportável
(para onde devo olhar?)
Tudo encanta e assusta
e tristeza é a palavra
que ocupa o coração
como quem rouba os olhos
de quem tem apenas olhos
- quase já não há estrelas
(o que posso esperar?)

2 de março de 2008

Sobre o amor

- Faz muito tempo que não lhe vejo feliz assim! O que houve?
- Estou apaixonado...
- Sério?? Nunca lhe vi tão bem!
- O amor rejuvenesce...
- Quando não enlouquece, sim! Rejuvenesce, revitaliza e redireciona a vida das pessoas...
- Sim... É verdade! Sinto-me bem, feliz e cheio de planos!
- Interessante! Você está exultante! Fico feliz! Queria que o mesmo ocorresse comigo, mas não tenho mais idade para isso...
- E desde quando essas coisas da vida têm idades próprias para acontecer? Há algum Ministério do Amor com uma tabela indicativa das idades e horários propícios para alguém entrar em nossas vidas e roubar-nos o coração? Quando crianças também não éramos atingidos por paixões inesperadas que tiravam-nos o sono, atrapalhavam-nos as provas, levavam-nos ao choro e faziam-nos sonhar, cantar e escrever cartinhas e cartinhas de amor sem fim?
- Que eu me lembre, sim!
- Então! Não há uma regra! O que nos atinge cedo, também pode nos atingir tarde!
- Pode ser, pode ser...mas não me aconteceu.
- Você se permitiu? Aposto que não! Com esse papo de que não tem idade...
- (silêncio)
- A alma é uma espécie de casa...as janelas têm de estar abertas para a luz entrar...
- Como aconteceu com você?
- Bom...Eu estava vivo e, então, aconteceu!
- (risos) Compreendo...Faz sentido...
- Se para morrer basta estar vivo, para apaixonar-se não é diferente!
- É, faz sentido também! Mas...você não tem medo?
- Medo de quê? De morrer?
- Não! De apaixonar-se!
- E por que eu haveria de ter medo?!
- E se der errado?
- E se der certo?
- Mas as chances de dar errado são maiores...
- Quem pode dizer? Nem mesmo na matemática os resultados das operações correspondem sempre ao esperado...
- É verdade. Mas os erros das operações matemáticas não envolvem pessoas! Um número não pode machucar-se, sofrer, chorar...
- Óbvio! Mas também não sente solidão, carência, não se cansa de estar só e não tem opinião nenhuma sobre o fato de ser par, ímpar... Prefiro arriscar. Não sou um número e, se fosse, preferiria ser par!
- Entendo.
- Se der errado, não terá sido por falta de tentativa, de acreditar na minha sorte! Além disso, se der errado, não acredito que será algo capaz de me derrubar ao ponto de me tornar inválido para o resto da vida! E prefiro uma casa cheia de luz do que obscura e fria!
- Exagerei no meu medo...Desculpa.
- Tudo bem. Sei que sua preocupação é bem intencionada. Porém, lembre-se sempre de uma coisa: grandes projetos envolvem grandes riscos! E haverá projeto maior do que o amor?
- Fora pagar as contas, ter um emprego e viver com saúde...creio que não!
- (risos...) O amor é ainda maior, pois, sem ser por ele, para que ter contas, empregos e, principalmente, saúde?!?
- (silêncio novamente)
- Além disso, há outra coisa... Estou apaixonado! Completamente apaixonado...
- (sorriso) E muito, percebe-se!
- Mais do que todas as minhas outras vezes juntas! Juntas e multiplicadas!
- Como aconteceu? - assim, além de você estar vivo e tal...
- Não sei... Como eu disse, eu estava vivo e aconteceu! Quando notei, havia se passado um segundo entre eu pertencer somente a mim mesmo e, em seguida, pertencer à outra pessoa! Foi uma questão de olhar...
- Olhar?
- Sim (suspiro...) - Como assim olhar? Olhar outra pessoa?
- Não...de eu ter me apaixonado pelo olhar de uma pessoa...
- Pelo olhar?
- Sim, a princípio... Depois do olhar veio o sorriso. Depois do sorriso, o falar. Depois do falar, o pensar, e, quando dei por mim, a questão era o existir da pessoa!
- Nossa... Uma pessoa ou um anjo? (sorriso)
- Um anjo a que chamamos pessoa! Alguns segundos após...
- Mas nem tudo é felicidade...Apesar de estarmos apaixonados e certos do nosso amor, a família dela não aceita o nosso relacionamento. Ameaça até mudá-la de cidade...
- Por quê?!? - Diz que é por causa da nossa diferença de idade.
- De novo a questão da idade...
- Os homens só pensam em números... Tolos...
- E o que vocês pensam a respeito?
- Pensamos que nos amamos! Aliás, pensamos e sentimos, indubitavelmente!
- E pensam em resistir?
- Óbvio!!!
- Mas compensa o transtorno?
- Duas vezes óbvio! Um pelo o meu amor a ela e outro pelo amor dela a mim! Quem sabe o futuro nos dê outras obviedades!
- (silêncio)
- Não entendo essa preocupação com idades, tempos e momentos... Quantos gênios revelaram-se na infância e quantos outros somente no fim da vida? Quantas vezes a humanidade foi sacudida por fenômenos extraordinários e inesperados, sem sinais e sem avisos, e quantos outros ainda estão por ocorrer? Em relação aos dramas da existência humana, crianças podem ter respostas ou algo a nos ensinar tanto quanto adultos e velhinhos... E se doenças e desgraças não têm hora certa para acontecer, paixões e amores também não! Ou seja: não há regra!!!
- Mas são coisas bem diferentes entre si...
- Sim! Eu sei! Bem diferentes! Doenças e desgraças são coisas para serem lamentadas! Amores e paixões festejadas!Bem diferentes mesmo!
- (silêncio)
- (indignação)
- O que a família dela diz?
- Diz que a nossa diferença de idade é muito grande e que sou muito velho para ela!
- (curiosidade)
- 15 anos...Sou 15 anos mais velho... Nem é tanto assim!
- Sim...não são 30 ou 40 anos, mas já são alguns bons anos...
- E daí? Não é a diferença de idade entre duas pessoas que faz com que essas duas pessoas deixem de ser equilibradas, responsáveis ou capazes de discernir entre o certo e o errado! O que importa é a maturidade ou imaturidade delas! E uma coisa eu posso lhe garantir: ela é uma pessoa madura!
- Certeza?
- Certeza! Não lhe falei que depois do falar veio o pensar...?
- Falou.
- Então! A pessoa é um poço de maturidade! Maturidade e responsabilidade! Sabe exatamente o que quer, não faz nada que não queira, tem autocontrole, conhece os seus limites, respeita-os, faz-me respeitá-los e procura superá-los refletindo e dialogando, comigo e consigo mesma...
- Parece madura...
- E é! Sei o que estou dizendo e sei o que estou sentindo...
- Mas você não acha que, com essa diferença de idade, os mundos de vocês são bastante diferentes?
- Acho! E também acho que foi exatamente por isso que nos apaixonamos!
- Você não disse que foi por causa do olhar dela, no seu caso?
- Sim! Um olhar que só encontrei fora do meu mundo!
- (silêncio)
- Fora do meu mundo, meu mundo de tédio e rotina, velhas idéias e velhos objetivos, regras, mesmices e nenhuma alegria e pouquíssima emoção...
- (mais silêncio)
- Mas eu preciso lhe dizer que, mesmo que eu vivesse no melhor dos mundos, eu não conseguiria resistir àquele olhar e àquele existir extraordinário e mágico!
- Por quê?
- Por que, em toda a minha vida, em nenhum outro olhar eu percebi tanto brilho e tanta calma, tanta doçura e tanta honestidade, pureza e ingenuidade, tanta luz e tanta força... Em nenhum outro olhar percebi tanto amor e tanta fé, tanta meiguice e tanta paixão acumulada e preparada para, enfim, se libertar... Pode lhe parecer estranho, mas de alguma forma senti-me envolvido e penetrado por aquele olhar como nunca outro me envolvera e penetrara e, às vezes, não raras vezes, tive a sensação de que palavra alguma seria necessária para que com ele eu me entendesse... Como se eu estivesse a admirar o mais belo pôr-do-sol e, de repente, fosse ele que me contemplasse!
- (silêncio)
- (silêncio profundo) - Isso nunca me aconteceu...
- Não tem como eu lhe dizer o que é desejar abraçar o sol.
- (surpresa)
- (suspiros)
Quase um minuto após:
- O que você pensa em fazer?
- Vejamos se consegue me entender: creio piamente que a vida preparou-me tal situação! Como uma espécie de benção, fui agraciado por Deus com o advento desse amor há anos desejado e esperado - talvez por séculos! Portanto, sinto-me relativamente tranqüilo em relação ao futuro de todos esses acontecimentos... O universo pode estar me aplicando o maior dos seus golpes, mas minha alma conforta-se na sensação de que os arquitetos do destino encontraram a inspiração que lhes faltava para o grande projeto da minha vida! Acredito que algo muito maravilhoso está para me acontecer e aquele olhar me inspira isso. Nele tenho me encontrado e reconhecido meus caminhos, meus sentidos...
- Mas...e a família dela? - Como eu lhe disse, tenho a sensação de que a vida está cuidando disso. Não creio que nos encontramos por acaso! Mas, se assim foi e se o acaso é um Deus, não sinto que estejamos na situação de simples dados em suas mãos! Olhares existem e sempre existirão, mas a mesma gravidade que atrai os dados ao chão também determina a posição em que caem. Portanto, de qualquer forma, alguma coisa nos aproximou! Há uma força nos ligando!
- Apaixonados enxergam razão em tudo...
- Talvez apaixonados sejam os únicos que enxerguem!
- A paixão cega...
- Pode ser que sim! Mas entre a cegueira da paixão e a tirania da razão, prefiro a primeira! A essa altura da minha vida, antes cego e feliz do que convencional e angustiado! Além disso, minhas razões podem ser diferentes das razões de qualquer outra pessoa... Quem pode me dizer que a paixão não é a razão que necessito, considerando-se razão como motivo que necessito para ser feliz e me encontrar?
- (silêncio)
- Além disso, além do fato de me encontrar apaixonado - o que por si só já é motivo para eu desejá-la e não deixá-la -, não devo satisfação à ninguém. Sou livre! Sou livre e quero me prender somente a ela, somente a ela...
- Mas, pelo visto, ela não é livre como você...
- Já conversamos sobre isso e concluímos que, se ela não é livre hoje, amanhã será! A família dela não estará sempre presente em sua vida - um dia faltará. Ces't la vie. Não que desejemos isso ou esperemos por isso. Mas não temos tempo a perder e queremos viver esse amor acompanhando-o em seu crescimento! E, justamente pelo fato de que um dia ela encontrar-se-á totalmente livre, sabemos que nada poderá nos impedir! O futuro é promissor e, diária e mutuamente, nutrimo-nos de forças e esperanças! É só uma questão de tempo e paciência...
- Você quer dizer muuuuita paciência, né?
- Com certeza. Mas temos os nossos meios (quem não os tem?), nossas estratégias, nossos momentos, nossas válvulas de escape e nossas crenças - quando são os olhos da alma que enxergam o futuro, ele não parece tão distante! Ninguém entende melhor a questão da relatividade do tempo do que a alma, essa maratonista de eternidades!
- (reflexão)
- Existem sacrifícios que, frente às recompensas prometidas e esperadas, são desprezíveis, desprezíveis... Além disso, meu passado me encoraja a esperar por ela...
- Como assim?
- As dores que experimentei no passado - além daquele olhar que já lhe expliquei - dão-me força para acreditar que, finalmente, os meus sonhos virarão realidade!
- Não tinha que ser ao contrário? As dores do passado não deveriam desencorajá-lo, como se estivessem sempre a lhes dizer que nada vai ser diferente e que tudo vai dar errado?
- Compreendo, mas tenho algo a lhe dizer! As mesmas dores que me torturaram, me machucaram e me desiludiram, também me ensinaram alguma coisa! Se, durante um tempo, ocuparam o meu coração, também o amadureceram com a sua presença! Tornaram-no mais paciente, menos ansioso, mais compreensivo e tolerante! Isso também tem a ver com a minha pré-disposição em esperar pela felicidade...Na verdade, aprendi que a felicidade não se encontra na outra margem do rio. Atravessar ao rio é a felicidade! Nesse sentido, cada pontada de dor que senti em meu coração foi uma aula que a vida me deu. Passei por um verdadeiro curso, integral e intensivo, e, agora que a grande professora Dor se foi, sinto-me preparado para a verdadeira felicidade e percebo que o espaço, outrora ocupado por ela, nesse instante encontra-se preparado para ser preenchido pelos bons sentimentos da vida: a paixão, o amor...
- (reflexão profunda)
- Agora eu quero amar em paz e, já ouviu isso?, se o amor é por nós, quem será contra nós?
- Já...Mas, se você aprendeu tanta coisa com o seu passado, se saiu amadurecido e consciente de todas essas experiências, não seria mais coerente procurar alguém mais próximo a sua realidade?
- Amigo, estou seguro. Não sinto que algo me falte. Hoje tenho o que preciso - e mais do que isso: tenho o que sempre quis! Além disso, um amor não se procura...encontra-se! Vou sair por aí procurando pelo o quê? Por olhares envolventes e penetrantes, carregados de ternura e emoção? Quantas vezes poderei me enganar, me confundir e me iludir? Será difícil compreender que o natural é mais autêntico e verdadeiro, melhor do que o encomendado? Será difícil aceitar que a espontaneidade é o melhor terreno para os verdadeiros sentimentos? Será impossível compreender que, à cada segundo à espera de alguém mais próximo a minha realidade, eu posso estar perdendo a chance de mudar a minha realidade? O que o mundo me deu é tudo o que preciso para desenvolver a minha vida!
- E se a família dela radicalizar?
- Radicalizamos também!
- Como assim?
- Uma reação parecida com a dos cristãos na época da perseguição ao cristianismo, na Roma antiga... Quanto mais perseguidos eram, mais cristãos tornavam-se! A violência com que eram escorraçados fortalecia suas convicções, amadurecia as suas crenças e oxigenava a disposição que tinham para lutar por seus ideais!
- Mas isso não fará com que o relacionamento de vocês vire um palco de guerra? Como poderão cultivar esse amor em meio a um tiroteio por parte dos que o condenam?
- Da mesma forma que os cristãos o fizeram...não desistindo e conquistando aliados na medida que a todos convenciam de que o que sentiam era sincero e belo.
- Muito idealismo...
- Veja por esse lado: imagine se, os cristãos a que me referi, tivessem desistido das suas lutas. Imagine se tivessem abaixado suas cabeças e abandonado suas crenças em função do medo, da opressão e da desesperança... Imagine se tivessem abandonado seus sentimentos, negando o que tinham no coração e fazendo-se surdos aos apelos da alma. Imagine. Como viveriam? Como, à cada dia, levantar-se-iam de suas camas e encarariam as tarefas do dia e as cobranças da vida? Sentir-se-iam dispostos, vigorosos e animados? Como poderiam acreditar em novos sonhos ou novos ideais, tendo a alma a lamentar suas próprias fraquezas e não se esquecendo, como é de se compreender, o brilho do Deus a que amavam e a vitalidade das crenças a que devotavam suas vidas? Como cuidariam dos mínimos detalhes da existência tendo as mentes e corações a cobrar-lhes, exigir-lhes e a lembrar-lhes, permanentemente, a alegria e a segurança com que lutavam e resistiam à destruição dos seus mais caros valores e mais puros planos? Puríssimos planos? Como acreditariam em qualquer outra coisa, poderiam manter abertas as janelas da alma, propícia à novas luzes e a novos banhos de calor? Como, após sucumbirem à covardia e à intolerância, poderiam, novamente, construírem fortalezas de amor e compreensão? Responda-me: como, novamente, seriam fortes e obstinados após tamanha negação ao que tinham de mais íntimo, verdadeiro, sincero, arraigado e honesto em suas próprias almas? Como? Como?
- Mas...
- Como se dedicariam a Deuses impostos, introduzidos em suas vidas por forças exteriores e estranhas, indiferentes aos imprescindíveis mecanismos internos e subjetivos que fundamentam a convicção e a legitimidade necessárias aos processos de adoração e dedicação? Como seriam suficientemente fortes para resistirem às dúvidas e inquietudes da alma frente a todas as questões e tentações que, naturalmente, surgem nas vidas de todos aqueles comprometidos com uma causa ou um princípio? De onde tirariam as energias e a segurança indispensáveis a quem se propõe atravessar terras e terremotos em nome do que é invisível, incorpóreo e impalpável como uma crença ou uma idéia? Como construiriam templos e os manteriam úteis e vigorosos se não tivessem solos firmes e consolidados nos quais fixassem seus próprios pés e fundamentassem suas opiniões e visões de mundo, seus valores, referenciais e a própria fé? Nem por arrogância, nem por teimosia. Nem por orgulho ou inflexibilidade...a única força a movimentar aqueles a que estou me referindo era a certeza da pureza honesta das suas convicções e, mais inabalável ainda, a certeza de que, caso sucumbissem às violências e martírios a que eram submetidos enquanto perseguidos e escorraçados, nunca mais conseguiriam levantar a cabeça, abrir os olhos, entreolharem-se e, principalmente, olhar para dentro de si mesmos! Nunca mais! Nunca mais!
- (silêncio)
A luminosidade multicolorida do dia começava a ceder espaço ao fundo escuro com que a inevitável noite cobriria a cidade e os seus horizontes quando voltaram às palavras:
- É assim que você se sentiria caso vocês não pudessem viver esse amor?
- Exatamente. Sentiria-me amputado, impotente, frustrado e injustiçado! Ela também, acredite! Preciso lhe dizer: a essa altura da minha vida, após tantos tombos e tropeções, creio que estou mais certo do que sinto, das coisas que penso e das coisas que quero... Não vou negar - também sinto uma imensa ansiedade, uma imensa vontade de não perder essa chance de ser feliz! Não quero abrir mão do que tenho de mais valioso, hoje, em minha vida! Entendo que posso parecer exagerado, lunático ou infantil quando insisto em afirmar que a enxergo como a chance final que a vida me deu para ser feliz... Concordo que ninguém deve carregar a responsabilidade de ser a felicidade de outrem. Mas é verdade que, dia após dia, minha felicidade liga-se mais e mais à existência dela e a sua própria felicidade! Como partes que se complementam e se enriquecem, se fortalecem e se alimentam de uma cumplicidade compartilhada, recíproca.
- Você já me convenceu da sinceridade e da profundidade dos seus sentimentos e, pelo o que diz, os sentimentos dela não são diferentes. Maravilhoso isso! Mas, enxergando-os como partes que desejam se complementar e, como estou a entender, mais do que apenas se complementar - enxergando-os como partes que desejam se fundir... acredita mesmo que será possível tamanho envolvimento tendo o mundo a lhes condenar?
- O mundo não! Parte dele! Uma parte importante mas não eternamente importante, afinal, sempre chega o dia em que tomamos as rédeas da nossa própria vida! Contudo, responder-lhe-ei de uma outra forma: possível e impossível não são condições - são estados de espírito! E você parece não saber das coisas que são capazes os espíritos apaixonados, envolvidos pelo o amor! Não estamos desejando viver sem respirar ou tocar o sol com as próprias mãos! Não queremos fechar os olhos e flutuar, nem falar com os mortos ou ressuscitá-los! O que queremos não pertence a ninguém, a não ser a nós mesmos e a nenhum outro: o nosso amor e os nossos desejos, os nossos sonhos e as nossas almas...o nosso tempo...a nossa força...e, principalmente, as nossas vidas! Quem tem o direito de decidir o que outra pessoa pode sentir? Com qual legitimidade alguém pode se opor à felicidade de outros?
- Não me oponho à felicidade de vocês, você sabe. Estou apenas ajudando-lhe a refletir sobre a situação em que se encontram.
- Ajuda de grande valia e por ela lhe sou grato! O mundo seria outro, melhor e mais humano, se todos se dispusessem a dialogar, a refletir e a compreender as posições estranhas aos nossos umbigos.
- Por que não fogem?
- O destino nos aproximou e até ao cenário escolheu. Se aqui nos uniu, aqui nos terá! Além disso, aos caminhos que nos apresentaram devemos respeito e consideração. É verdade que nosso amor não deixaria de crescer em qualquer parte do mundo. Isso depende das nossas almas e não do espaço em que estamos. Mas, no mesmo chão que nos ofereceu as primeiras dificuldades, queremos fincar as raízes de um amor que não teme enfrentá-las! O mundo pode ser vasto, imenso, ter paraísos e oásis como belos esconderijos. Porém, maior é o nosso mundo e não há como escondê-lo. Aqui nos amamos, aqui ficaremos...
- Amém!
- (suspiros)
- Tenho que ir... A noite já avança e meu pacato mundo já sente a minha falta! Espero encontrar-lhe amanhã ou depois!
- Quem sabe amanhã após a minha festa. Aliás, lhe darei o endereço e ficaria feliz se você comparecesse! Provavelmente, lá você poderá conhecer o meu amor!
- (sorriso) Que bom! Aceito o convite! Mas, diga-me: a festa...trata-se de quê?
- Meu aniversário!
- Mesmo? Legal! Há tempos não participo de uma festa assim! Se você fosse mulher eu não perguntaria, mas, como não é...(risos)...quantos anos fará?
- Advinha!
- 80?
- Não! 85!

Fila

Ele não tinha mesmo para onde olhar. Do que adiantaria encará-la se as coisas a ele vociferadas eram, aparentemente, verdadeiras? O chão era, mesmo, o seu único refúgio. Olhava-o e pensava em como estava sujo. Porém, como essa questão não fazia parte da pauta de discussões, não tinha coragem de fazer qualquer comentário nesse sentido. É verdade que algumas vezes tentou levantar os olhos, procurando observá-la. Entretanto, a raiva com que as palavras eram a ele dirigidas fazia-o desistir de qualquer diálogo. Era mais seguro apenas ouvi-la e continuar refletindo sobre o quão sujo o chão poderia ficar. Talvez ele mesmo estivesse se sentindo como aquele chão, sujo e pisoteado. Pisoteado por uma cavalaria de argumentações que desconfiava serem legítimas e que troteavam sobre a sua alma confusa e esfarrapada. Confusa, esfarrapada e vagabunda, como a si mesmo admitia e não fazia questão de negar. Porém, mesmo comparando-se ao chão mais sujo que já havia visto, não se sentia o mais vagabundo dos homens. Sabia que era um deles, mas não acreditava estar na cabeceira da lista, liderando outros tantos e tantos sujeitos indignos. Entre um grito e outro, ponderava: "se todos os homens considerados desgraçados forem realmente desgraçados, em que lugar eu estaria em uma fila entre o céu e o inferno?". Pensou por alguns instantes e considerou que o seu lugar seria mais ou menos ao meio da fila, nem tão próximo aos primeiros, os mais inocentes, os que já estavam no céu, nem tão junto aos mais infelizes, os dos últimos lugares, os condenados ao inferno. Quase esboçou um sorriso quando concluiu que teria a colocação de um homem comum, absolutamente mediano, nem muito santo e nem demoníaco, como gritava, aos seus ouvidos, aquela louca que ele mal conhecia. Mas não sorriu. Fazia força para não aumentar a ira daquela descontrolada que mais parecia um megafone enraivecido e com forças sonoras para além de um bilhão de decibéis. Era melhor não piorar a situação. Um sorriso seu, mesmo que amedrontado, tímido ou assustado, poderia atear fogo à situação e fazer com que as coisas fugissem ao controle. Contudo, a certa altura dos acontecimentos, se era muito ou pouco vagabundo, o lugar em que ocuparia naquela fila e a inigualável sujeira do chão em que se encontrava deixaram de ser os objetos das suas preocupações mais imediatas. Notou que a gritaria tinha cessado e que a ensandecida a sua frente havia partido para uma espécie de luta livre cujo único objetivo era arrebentar a sua cara. A moça, pelo que lhe parecia, passara a achar melhor expressar a sua extraordinária indignação também pelas mãos e pelas pernas, feito que levou a cabo através de uma descontrolada sucessão de murros e pontapés executados com excessivo desequilíbrio. Aparentemente, o seu objetivo era apenas um: matá-lo. Pelo que podia perceber, tal objetivo era uma espécie de promessa que não poderia deixar de ser realizada. Talvez – e ele mesmo não sabia dizer – a garota encarasse a coisa a partir de alguma perspectiva religiosa, alguma espécie de fundamentalismo. De qualquer maneira, após alguns bofetões, sentiu seu rosto ardendo e um pouco de sangue escorrendo pelo canto da boca. De repente – e apesar dos chutes, murros, tapas e pontapés – um pensamento tomou-lhe a atenção: não sabia se era merecedor de tudo aquilo pelo que estava passando. Não sabia se merecia apanhar tanto e se, realmente, era merecedor de tantas violências e tantas acusações desequilibradas. Mas não demorou a resignar-se e a acreditar que, certamente, teria dado motivos para aquela raiva incontrolável. Assim, àquela moça aceitou oferecer os seus ouvidos e as suas dores como pagamento pelos pecados que nem tinha certeza se havia cometido. Imaginou que, deste modo, poderia estar contribuindo para que aquela mulher reencontrasse o equilíbrio. Não sabia, entretanto, que esse pagamento seria considerado baixo, muito aquém do que a ofendida julgava ser merecedora. De qualquer forma, nem teve tempo para considerar essas questões. A enfurecida que lhe agredia havia perdido o controle e o fizera voltar as suas atenções ao chão, rachando-o e sujando-o de sangue com a sua cabeça arrebentada. Mas nem sentiu. De uma hora para outra, perdera a consciência e passara a não entender mais nada. Quem era? Onde estava? O que estava acontecendo? Que fila era aquela? Que lugar era aquele, tão quente, tão quente?

Outrora


Há muito tempo não dormia mais em paz. Abria os olhos a toda hora, nervoso, contrariado. Sentia que ela o traía e isso o deixava desorientado. Sentado no canto da cama, observava-a, calado, procurando a coragem de falar-lhe a respeito. Às vezes, também, pensava em sufocá-la. Só não sabia se com as mãos ou o travesseiro. Mas não tinha coragem. Preferia morrer ao invés de matá-la, afinal, morte por morte, a sua já era quase um fato. Traído, humilhado, desrespeitado – era quase um morto, pensava. Passava as noites imaginando o que teria feito de errado, o que deixara faltar e o porquê de terem chegado àquela situação. Mas, ao invés de respostas, deparava-se apenas com mais e mais pensamentos angustiantes, dúvidas inquietantes e sentimentos dilacerantes. Amava-a, e não era pouco. Por isso mesmo, julgava-se morto ao sentir-se traído, enganado, ao sentir que outros – outros, meu Deus, outros! – tinham a sua mulher até mais do que ele mesmo. Ao saber que outros – quem? quantos? onde?!? – com ela transavam enquanto ele trabalhava, viajava e houvesse ocasiões para ser enganado. Muitas vezes, no meio da noite, suado e ofegante, acordava sobressaltado, querendo falar com ela. Falar ou sufocá-la, com as mãos e o travesseiro, como havia decidido caso fosse mesmo eliminá-la. Mas se continha. Não tinha coragem, então se continha. Quando se decidia por não sufocá-la, pensava em questioná-la, em perguntar-lhe a verdade, em ajudá-la a confessar, a implorar perdão e a entregar os nomes dos bois. Mas não tinha coragem. Acovardava-se ao imaginá-la desabafando, confessando e apresentando nomes. Nomes, um plural que o torturava e que não saía de sua mente. Atordoava-se, desesperava-se, pensava nos filhos e continha-se por eles. O que poderia fazer? O que deveria ser feito? Pensava nos filhos, nos amigos, nos vários vizinhos e nas mentiras da vida, do seu casamento, nas estórias difíceis e mal acabadas de todos os tempos anteriores aos dois, nas inúmeras brigas e inúmeros atos de dor e maus tratos, nas mil violências de um contra o outro e em todas as chances e sonhos perdidos, nas desilusões, nas desesperanças e no medo do fim, de um fim sem retorno. Calava-se. Entupia-se com o ódio, a dor e o ciúme, engolindo a seco, com medo e impotência, a vontade de saber a verdade. De vê-la partindo. Partindo ou morrendo. Se tivesse coragem, pensava. Se tivesse coragem, nem mão, nem travesseiro. Um só tiro – passou a calcular – um só tiro, e o problema estaria resolvido. Um só tiro, ficava repetindo para si mesmo, perturbado, quase visualizando uma arma em sua mão outrora amável e carinhosa. Um só tiro, um só tiro, um só tiro, pensou e repetiu milhares de vezes, obstinado, obcecado, desesperado, até o dia em que decidiu dar não só esse tiro, mas outros também, e com aquela mão, outrora, amável e carinhosa.

Querido

Sexo. Sexo e mais nada. Tudo o que ela queria com ele era, apenas, sexo, sexo e sexo. Beijava-o, mordia-o, desdobrava-se em mil para surpreendê-lo em todos os cantos e em todas as horas, mas não o agarrava com nenhuma outra intenção a não ser fazer sexo. E isso o matava. Amava-a e tudo fazia para que a recíproca fosse verdadeira. Mas percebia a unilateralidade dos seus sentimentos a cada vez que ficava na cama olhando-a levantar-se e dirigir-se ao banheiro, satisfeita e saciada, a caminho do chuveiro ou de qualquer outro lugar em que pudesse repor as suas energias. Sofria. Sentia-se desejado, estimado, porém também sentia que, para ela, ele não passava disso: uma pessoa querida, nunca amada. Sabia que era o seu preferido, o principal da sua lista, o mais constante – e o mais querido. Via-a arrumar-se, trocar suas roupas, pôr seus vestidos, as roupas de baixo, prender os seus laços, prender os cabelos, dar os seus nós... mas nunca amá-lo. Pensava em largá-la, todavia faltava coragem. Queria-a com desespero e lhe era fiel. Fiel aos seus chamados, aos seus muitos comandos, desejos e mil interesses do corpo e da alma. Contudo, sofria em silêncio mesmo quando sorria. Mesmo assim nunca a deixava. Não a deixava e servia-a sempre, por noites inteiras, de todos os jeitos e em todos os cantos em que juntos cabiam. Não sabia o que fazer e não enxergava alternativa. Era isso ou perdê-la, idéia que não suportava. Amava-a e, mesmo sofrendo, sujeitava-se a tê-la apenas na cama, pelo tempo que ela determinasse e que o sexo tornava-o querido. Querido... Dolorosa, absurda e absolutamente apenas isso: querido.

Improrrogável


Ainda sob o impacto da notícia, procurou refúgio no recanto incorruptível da memória. Se haveria de morrer, não queria mais perder um segundo sequer com aquele presente insuportável. Queria o passado, as suas recordações, as ocasiões mágicas em que a vida havia valido a pena, os seus jovens anos, os seus amores, as suas viagens, os longos e apertados abraços em todos com os quais compartilhara as suas alegrias e tristezas, os seus muitos e marcantes momentos. Queria as festas, as danças, os incomparáveis dias e as inacreditáveis noites em que se perdia e se encontrava, às vezes só, às vezes não. Queria a juventude e os seus acontecimentos, desejando revivê-los mesmo que somente assim, relembrando-os. Sentada à beira da cama, os pés sobre os chinelos e as mãos sobre as pernas, ouvia o vento balançar as grandes janelas que havia em seu quarto – o quarto em que dormia há décadas e que, há décadas, via-a adormecer e acordar mais velha. Olhava as paredes, às vezes fixando os olhos em alguns dos variados quadros nelas pendurados. Uma dezena de quadros das mais distantes épocas e com as mais variadas tonalidades de cores, temas e tempos. Quadros que contavam parte da sua história e que, agora, a sua inconformada memória procurava reviver em cada mínimo detalhe e em cada único sabor. De vez em quando, com os olhos fechados, suspirava como se levasse ao peito as recordações de uma vida inteira: as paixões desenfreadas, os amores impossíveis, as experiências inacreditáveis... Buscava a tudo. Queria a tudo. Mas não podia, já não podia – já era tarde. As doenças adiantadas suplantavam-lhe as forças. Tinha o corpo incurável e os minutos condenados. As carnes como trapos e as horas como foices. Vigor apenas nas lembranças, absolutas e intransigentes, e na consciência de que se encontrava completamente só em seus últimos momentos – só, e tendo em quadros, móveis, paredes e lembranças as suas únicas testemunhas daquele fim inadiável e daquela noite improrrogável. Improrrogável.

Despropósito

Pobres, miseráveis de toda cor e de toda idade, pessoas que nada tinham a não ser desgraças e carências, fizeram-no perceber que as suas próprias desgraças eram bençãos e as suas carências, ilusões. Outrora, penúria e privação eram palavras cujos sentidos desconhecia, sentidos que seus abastados dias encarregavam-se de eliminar das suas cotidianas experiências. Entretanto, o contato com pessoas a quem a vida tinha oferecido apenas sofrimentos e provações fizera-o desejar alargar o campo dessas suas cotidianas experiências para além do círculo de hipocrisia e individualismo a que estava habituado. Finalmente – pensava – não mais respirarei esse ar infestado de falsidades e mentiras que há muito me envolve. Cada vez mais, e de uma forma que não conseguia explicar e resistir, sentia amadurecer dentro de si uma antipatia inominável por tudo que, desde sempre, cercara-o com ostentação e estardalhaço: festas, roupas, viagens, jantares, bebidas, automóveis, mulheres, negócios, prazeres, prazeres e mais prazeres, inconsequentes e exagerados. Começara a acordar sentindo-se angustiado, devedor de atenção aos que não tinham atenção, portador de sortes e facilidades a que não tinha direito. Também começou a sentir-se farto de comodidades e confortos que, ao invés de aliviá-lo, davam-lhe a impressão de incriminá-lo e envergonhá-lo. Sentia que algo mudara dentro de si. Algo profundo e importante, capaz de colocá-lo em confronto com tudo o que era e desejava. Com uma facilidade que não conhecia, passou a olhar para dentro de si mesmo e a sentir repulsa pelos sentimentos e comportamentos materialistas que, há séculos, desenvolvia. Sentiu que não bebia – afogava-se; que não comia – empanturrava-se; que não se vestia – ornamentava-se para os intermináveis desfiles de arrogância, soberba e indiferença a que fora acostumado ao longo da sua extravagante e improdutiva vida. Ao longo do dia, começou a questionar as suas atitudes, a modificar os seus objetivos e a abandonar carros, reuniões e elevadores para direcionar-se a quem a sua nova consciência orientava-lhe: àqueles a quem a vida não havia sorrido, os desvalidos, desamparados de toda sorte, desaventurados e esquecidos, abandonados e condenados à desditas, desgraças e aflições. Amigos e parentes começaram a evitá-lo, considerando-o doente ou enlouquecido. Os mais próximos, antes de sumir, aconselhavam-no a não ser ingrato com as alegrias e recompensas com que a vida brindava a sua feliz existência. Mas não transigia. Não queria mais saber daquela vida que levava – falsa, fútil, leviana. Não mais jantares recheados de vaidades, nem mais amigos escolhidos por interesses – refletia. Nem mais um segundo dedicado ao supérfluo, nem mais um dia oferecido à ganância. Se tinha tempo, gastaria-o com quem necessitasse de ajuda e não mais consigo mesmo, como sempre fizera desperdiçando irrecuperáveis oportunidades de não ser tolo e egoísta. Algo mudara. E mudara com tranqüilidade, sem angústias e sem tormentos, passivamente. A antipatia aos seus antigos comportamentos remodelou-o por completo, dando-lhe uma nova alma e tornando-o um novo homem – um novo homem. Desprendeu-se do que era material e cultivou o desapego. Desfez-se de carros, roupas, aparelhos e parafernálias que dominavam a sua vida transformando-o em coisa ou em escravo dessas coisas. Transformou a sua casa. Dividiu quartos, salas e corredores entre homens, mulheres e crianças necessitadas de cuidados e carinhos. Organizou campanhas, arregimentou pessoas e passou a dedicar-se, crescentemente, aos cuidados daqueles que levava para casa e ajudava a ressuscitar. Mudara completamente. Era uma nova pessoa: realizada e feliz como nunca havia sido, lúcida e sensível como nunca lhe acontecera. Estava bem e jamais pensava em voltar atrás. Desejava, na verdade, radicalizar a sua nova vida, ajudar a mais pessoas e viver para esse fim, realizado, determinado e nunca mais iludido. Nunca mais iludido – pensava, entre aliviado e maravilhado – nunca mais iludido com o despropósito de uma vida que não era voltada para o amor.