31 de julho de 2008

Nada

Coisas de crianças, gracinhas de bebês, o pôr ou o nascer do sol, a chuva na janela, as ventanias, as tempestades, o vôo do beija-flor, o canto dos pássaros, as formas das nuvens, o arco-íris, as florestas, os oceanos, as ondas, as conchas, as praias, as serras, as montanhas, as estradas, as poesias, as literaturas, os sons, as melodias, os doces, as comidas, os filmes, as partituras, as paisagens, os horizontes, os céus, as estrelas, as luas, os eclipses, os desenhos, as pinturas, os quadros, as sinfonias, as óperas, os teatros, as contas da matemática, os avanços da ciência, as pedras preciosas, os frutos, os filhos, as rezas e as religiões – nada se compara ao olhar, malicioso, de uma mulher bonita. Nada.

29 de julho de 2008

O banheiro era a sua única opção. O quarto não era apenas seu, alguém poderia abrir a porta e o suicídio seria a única saída – sabia, afinal, que o que fazia não era normal. Aliás, há algum tempo desconfiava que nada mais fosse normal. Porém, mesmo desconfiando que a normalidade também houvesse sido defenestrada do mundo, sabia que a sua mania era esquisitíssima. O banheiro – pensava – era a única opção. Trancava-se para tomar banho e, meia hora depois, saía feliz e sequíssimo. Secava-se bem, pensavam os familiares. Saía do banheiro, dirigia-se ao quarto, deitava-se na cama e ficava pensando que deveria parar com aquilo. Mas não dava conta. Era a melhor parte dos seus dias e há tempos praticava. Não havia prazer maior, refletia. Pensava, também, sobre a força e a coragem necessárias para largar aquela mania. Contudo, geralmente concluía que ruim mesmo era ter apenas o banheiro para tal prazer. Se morasse sozinho ou se pudesse trancar-se no quarto, desejava enquanto calculava o quanto poderia ser feliz. Mas não morava sozinho, não era o único a usar o quarto, dividia a casa com os familiares e não podia levantar qualquer suspeita. O banheiro, realmente, era a sua única opção. Conformado, usava-o todas as vezes que era possível – satisfeito, crente de que não era observado e seguro de que seu comportamento era tão secreto quanto anormal. Um dia, porém, essa segurança se desfez. Um dos seus familiares morrera usando o banheiro e, desde então, passou a pensar que a alma do infeliz ficara por lá, presa a casa pelas circunstâncias da morte. Desesperou-se. E o banheiro? Como o usaria? A alma do familiar poderia estar lá dentro, sentada, deitada, perambulando pelo ambiente ou em pé atrás da porta, parada, agachada ou de qualquer outra maneira perdida e penada. Sua privacidade estava acabada. No velório tal preocupação já lhe roubava a atenção e, exatamente por isso, nem se deu conta de que ele era o único vivo a não chorar pelo morto. Acreditava, cada vez mais, que a alma do sujeito ficara no banheiro, afinal, já o achava inconveniente e tinha certeza de que ele não perderia a oportunidade de bisbilhotar aos outros. Lembrou-se de uma vez em que o falecido perguntara-lhe por que se demorava tanto em seus banhos – e essa lembrança, por si só, fez com que se desesperasse mais ainda. Em um desses momentos de desespero, aproximou-se do caixão e, olhando fixamente para o defunto, disse-lhe em pensamento: “pensas que me enganas, mas sei o que planejas. Há tempos demonstras curiosidade pela minha vida e talvez tenhas desprezado o fato de que curiosidade mata, como dizem por aí. Porém, sei que ainda andas pela nossa casa, observando-me. Teus olhos não me enganam, desgraçado”. Findo o velório e enterrado o morto, voltou para casa e foi direto ao banheiro, certo de que com um pouco de esforço poderia perceber a alma do infeliz e expulsá-la de lá. Contudo, após inúmeras tentativas, deu-se por derrotado em seu belicoso projeto de reintegração de posse do banheiro da sua vida. A alma do finado parecia não querer discussão, preferindo permanecer em sua nova – e privilegiada situação – de expectadora silenciosa e inexpugnável das coisas. Não tinha saída. Não possuía meios para morar sozinho, nenhum outro cômodo da casa oferecia segurança aos seus propósitos e o banheiro, mesmo com a porta trancada e todas as suas paredes, não mais lhe servia como uma fortaleza de intimidade e privacidade. Assim, três dias após o velório, entrou em uma profunda e irreversível crise. Sua existência reclamou a falta do banheiro, tanto para o que era normal, quanto para o que somente a mais absoluta privacidade poderia permitir-lhe. A inutilização absoluta do seu espaço predileto fez com que seus nervos não agüentassem mais. Acessos, desmaios, chiliques e faniquitos tomaram conta do seu comportamento, tornando-o, de uma hora para outra, uma pessoa irreconhecível, assustadora e perigosa – completamente desequilibrada, como os próprios familiares começaram a dizer. Tal desequilíbrio atingiu o seu ponto máximo quando, no quarto dia após o velório, suas trêmulas mãos atearam fogo ao banheiro, incendiando-o com combustíveis que acreditava cremar espíritos. Foi a gota d’água para a sua família. Com parte da casa ainda em chamas, seus pais decidiram interná-lo em um hospital psiquiátrico e submetê-lo a tratamentos que prometessem o seu reequilíbrio. Antes mesmo do fim do incêndio, quatro homens o arrastaram até o hospital, obrigando-o a usar uma camisa de força e até mesmo uma fucinheira improvisada. A casa pegando fogo, os moradores desesperados, a vizinhança amontoada e uma pessoa sendo arrastada com uma fucinheira presa ao rosto proporcionaram aos expectadores uma cena interessante – e deprimente. Mais tarde, o momento em que o fogo foi apagado coincidiu com o instante em que, já no hospital psiquiátrico, a focinheira que o amordaçava foi retirada. Nenhuma palavra saiu da sua boca, mas, em seu olhar perdido, todas as tristezas do mundo apareceram. Contudo, tristeza maior estava por vir. Diagnosticado, na manhã seguinte foi transferido para o hospício da cidade, um velho manicômio que ficava em um prédio antigo e semidestruído, habitado por uma centena de pacientes que, além dos quartos, dividiam um único e apertado banheiro coletivo – razão de variados tratamentos improdutivos, incontáveis olhares desesperados e inúmeros instintos assassinos. Incendiários.

20 de julho de 2008

Criatura

Eu conheço tua cara,
Eu conheço tuas mãos,
Eu conheço tua fala,
teus amigos, teus irmãos.
Eu conheço tua casa,
Eu conheço teus andados,
Eu conheço teu destino,
teu presente, teus passados.
Eu conheço tuas fugas,
Eu conheço tuas falhas,
Eu conheço tuas rugas
e também tuas batalhas.
Eu conheço teus amigos,
Eu conheço teus enganos,
Eu conheço teus afetos
e também sei de teus planos.
Eu conheço tua letra,
Eu conheço tua sorte,
Eu conheço tua vida
(sei também da tua morte).
Eu conheço o que te inflamas,
Eu conheço o que contestas,
Eu conheço o que tu amas
e também o que detestas.
Eu conheço teus desejos,
Eu conheço teus amores,
Eu conheço tuas pedras
e também as tuas flores.
Eu conheço teus olhares,
tuas lágrimas...conheço!
E também ao respirares
teu suspiro Eu reconheço.
Eu conheço-te completo,
Eu conheço-te desfeito,
Eu conheço-te pretérito
e também mais-que-perfeito.
Ah figura inacabada,
transparente criatura:
Eu conheço teus defeitos
e também tua formosura.

18 de julho de 2008

O sexo

O sexo é o corte do sexo.

17 de julho de 2008

Real

Não existe realidade fora da eternidade - só o eterno é real.

11 de julho de 2008

Nós

Eu Nós,
Tu Nós,
Nós pós,
Nós sós.
Dois Nós
na voz,
na voz
dois nós.
Só Nós
na foz,
a sós,
mas sós.
Eu Nós,
Tu Nós,
Tu Nós,
Eu Nós.

2 de julho de 2008

O sol

Para Carolina

O sol,
no céu,
não tem,
eu sei,
qualquer
noção,
nem faz
idéia,
de que
os ares
que ali
estão
entre ele
e nós,
ali
estão,
entre ele
e nós,
porque
a luz
que sai
de nós
faria
ao próprio
um mal
imenso,
um grande
estrago,
a sua
estima.