11 de maio de 2008

Há tempos

Quando sua mulher engravidou pensou que, finalmente, viveria a experiência que justificaria sua existência. Já tinham se passado quase quarenta anos desde que viera ao mundo, porém, até aquele momento, sentia que nada era digno de nota ou consideração em sua vida. Agora, prestes a tornar-se pai, desconfiava de que as coisas ganhariam algum sentido. Sua insignificante existência ganhara a chance de terminar possuindo algum significado. Sabia que sua esposa o amava, e muito. No entanto, a paternidade trar-lhe-ia a presença inquestionável do amor incondicional de um filho ou de uma filha. Assim, a partir do momento em que soube que seria pai, seus pensamentos voltaram-se a uma só questão: seria menino ou menina essa única pessoa para a qual ele seria muito importante? Sentiu-se a pessoa mais privilegiada do mundo quando a vida deu-lhe a resposta. Há quase quarenta anos procurava entender o que era ser um homem e, agora, sem qualquer preparação, viu-se encarregado da maior responsabilidade que já haviam colocado sobre as suas não tão largas costas: cuidar de uma mulher – de uma criança, na verdade, mas que, caso ele obtivesse sucesso naquela estranha e novíssima tarefa, um dia viria a ser uma mulher. Contudo, a vida tinha lhe preparado um desafio ao qual não sabia se estava à altura. No mesmo momento em que ganhou uma filha, perdeu a mulher nas incompreensíveis complicações cirúrgicas que subtraem vidas inocentes em hospitais não tão inocentes assim. Em suas não tão espaçosas costas, a partir daquele momento, fora obrigado, também, a carregar o peso da solidão. Entretanto, nas madrugadas que se sucediam, tal peso era sempre arremessado para o alto pelo choro da filha reclamando a sua atenção. O silêncio da casa era invadido pelo gemido daquela pequenina que, quando deitada na cama ou em seus braços, parecia uma caixinha de surpresas. Todavia, a ausência de sua esposa era sempre presente. Sentia a sua falta e carregava uma tristeza sem tamanho por tê-la perdido. Doía não tê-la presente nas trocas das fraldas que juntos estocaram, na hora das mamadeiras, dos primeiros brinquedos, dos primeiros passos e das primeiras palavras daquela que era o produto em miniatura de um imenso amor. Sua esposa fazia-lhe falta e não havia, na vida, parentes ou amigos que amenizassem a sua ausência. Ela era – como ele acreditava – o caminho que o levaria a descobrir o porquê da sua própria vida. Mas o destino, artesão de surpresas, tirou-lhe um caminho e ofereceu-lhe outro – e, com o passar do tempo, suas cada vez mais cansadas costas viram fraldas virarem calças, chupetas virarem batons, brinquedos virarem amigos e as noites recheadas de gemidos virarem madrugadas mal dormidas à espera da garota. Dia após dia, sozinho, cuidou da criança e dos seus penteados, do seu guarda-roupa e dos seus namorados. Buscou-a na escola e levou-a em festas, às vezes seguro, outras preocupado, mas sempre disposto e com todos os zelos. Não reclamava nunca. Ano após ano, também sonhava quase todas as noites com a esposa e acreditava vê-la andando pela casa, conversando com a filha ou dormindo ao seu lado. Falava com ela tantas e tantas vezes que acabou por chamar a atenção dos amigos, dos vizinhos e de todos os que o viam falando com os ares e as paredes. Até a filha – que crescera acostumada com as estranhezas do pai – começou a achar que a loucura alcançara-o, acompanhando-o pelo mundo e corroendo-o por dentro. Sentado na varanda da casa, ou na cama do quarto, passou a ficar horas olhando a janela e os quadros da parede, encarando-os como se pudesse adentrá-los. Aos poucos, deixou de se relacionar com as pessoas e ampliou o tempo em que passava os dias conversando somente consigo mesmo, coisas desconectadas e incompreensíveis a todos que se aproximavam e o ouviam. Fechou-se em si mesmo e, com os olhos inexpressivos, assim caminhou para o fim da vida acompanhado apenas por aquela que desde sempre havia sido a sua mais constante e misteriosa companhia: a dúvida sobre o porquê da sua existência. Quando partiu, não deixou sinal de que havia resolvido a questão. Foi embora e, ao despedir-se da filha, chorou como não havia feito em todos aqueles dias marcados pela falta da esposa a cada fralda trocada ou madrugada mal dormida. No último momento, segurou a sua mão e a encarou como não o fazia há anos. De repente, cerrou os olhos e nunca mais voltou a abri-los, respirando por mais pouquíssimas vezes até que deixou de fazê-lo por completo – para muitos, para descansar em paz, mas, para a filha e todos que o conheciam bem, para apenas e tão somente voltar aos braços daquela que o esperava há tempos.

3 comentários:

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

nossa, seus textos são fortes, e doces ao mesmo tempo.Tem cheiro de laranja madura em tempo de chuva.adorei.
Fiz postagem nova, apareça por lá, será sempre bem vindo.Um abraço
marthacorreaonline.blogspot.com

Lucas disse...

Nossa, Adorei, muiiiiito bommm
nao sabia que escrevia tao bemmm

O Fernando ta mandando um abraço

falo Cezar

okakodkoapdkopadkpoadakosp

abraçooooooo

adicionei o link do seu blog no meu, tem problema ?

N. Moscardi disse...

Oi =)

Bom, te mandei um email comentando sobre esse texto porque acabei vendo-o antes no Cult Blog, quando fui dar uma olhada no site... Mas, não custa nada elogiar de novo ! =)

Excelente texto como sempre !!