31 de dezembro de 2008

O significado de algumas palavras

Paciência. [Do lat. patientia.] S. f. 1. Qualidade de paciente. 2. Virtude que consiste em suportar as dores, incomôdos, infortúnios, etc., sem queixas e com resignação. 3. Perseverança tranquila. (...)

Dilema. [Do gr. dílemma, pelo lat. dilemma.] S. m. 1. Lóg. Raciocínio cuja premissa é alternativa, de sorte que qualquer dos seus termos conduz à mesma consequência. 2. Fig. Situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas.

Mágoa. [Do lat. macula.] S. f. 1. Mancha ou nódoa proveniente de contusão. 2. Fig. Desgosto, amargura, pesar, tristeza. (...)

Paixão. [Do lat. pasione.] S. f. 1. Sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e a à razão. (...)

Tempo. [Do lat. tempus.] S. m. 1. A sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc., que envolve, para o homem, a noção de presente, de passado e futuro (...). 2. Momento ou ocasião apropriada (ou disponível) para que uma coisa se realize. (...)

Orgulho. [Do frâncico urgulli, 'excelência', atr. do cat. orgull e do esp. orgullo.] S. m. 1. Sentimento de dignidade pessoal; brio, altivez. 2. Conceito elevado ou exagerado de si próprio; amor-próprio demasiado; soberba (...)

Mentira. [De mentida (...)] S. f. 1. Ato de mentir; engano, impostura, fraude, falsidade. 2. Hábito de mentir. 3. Engano dos sentidos ou do espírito; erro, ilusão (...)

Sincero. [Do lat. sinceru, 'sem mistura; sem malícia; puro'.] Adj. 1. Que se expressa sem artifício, sem intenção de enganar; franco, leal. 2. Que se mostra disposto a conhecer a verdade; franco, leal (...). 3. Dito ou feito sem dissimulação. 4. Verdadeiro, autêntico, puro (...) 5. Cordial, afetuoso (...) 6. Sem afetação ou disfarce (...) 7. De boa fé (...)

Saudade. [Do lat. solitate, 'soledade, solidão' (...)] S. f. 1. Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las (...) 2. Pesar pela ausência de alguém que nos é querido. (...)

Oportunidade. [Do lat. opportunitate.] S. f. 1. Qualidade de oportuno. 2. Ocasião, ensejo, lance. 3. Circunstância adequada ou favorável (...)

Esperança. [Do lat. sperantia, do v. sperare] S. f. 1. Ato de esperar o que se deseja. 2. Expectativa, espera. 3. Fé, confiança em conseguir o que se deseja. (...)

Ódio. [Do lat. odiu.] S. m. 1. Paixão que impele a causar ou desejar mal a alguém; execração, rancor, raiva, ira. 2. Aversão à pessoa, atitude, coisa, etc.; repugnância, antipatia, desprezo, repulsão. (...)

Amor. [Do lat. amore.] S. m. 1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou de alguma coisa. 2. Sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro ser (...)

Fonte: Dicionário Aurélio

30 de dezembro de 2008

Estrelas

Eram três as estrelas. Como não sabia a qual falar, falou às três de uma vez:
- Sempre estivemos juntas e, de alguma forma, completamo-nos em belezas que, isoladamente, sabemos, são inigualáveis. Contudo, as mesmas belezas através das quais lançamos luzes sobre o mundo, orientando e esclarecendo os homens em suas intermináveis e incontáveis voltas, também os confundem e os desorientam por serem fortes, demasiadamente fortes e inexplicavelmente belas.
Após uma breve pausa, continuou:
- Estrelas que estão no céu - céu que tem a cor que quer, até do pecado - respondam-me, eu peço: o que devo fazer?
Depois de algum tempo, ouviu por resposta:
- Importa que você converse. Um pouco de paciência com as pessoas mais lentas e amedontradas, porém! É importante, também, que você fique, ainda, nos bastidores da fama. Entenda. É esse o caminho.
00:28, 00:29, marcavam os ponteiros contando as horas. Vou dormir - pensou - quem sabe eu acordo e é tudo passado. E adormeceu, sem saber que o passado só existe em relógios.

Assim

Deixemos tudo como está, enquanto tudo esteja...assim.

28 de dezembro de 2008

Vento

Onde não há nada, há o vento - e a lógica da vida não deixa de estar presente com a sua inteligência insuperável.

27 de dezembro de 2008

Sóis

Esquecê-lo, não tem jeito.
Esquecê-lo, não há como.
Tenho um coração no peito
e esse coração tem dono.

Esse dono é um olhar
que penetra o peito adentro,
que consegue dominar
minhas partes e o meu centro.

Quando manda nada faço
a não ser obedecer
- esse olhar desenha um traço
e eu me ponho a percorrer.

Ah...! Olhar de mil estrelas,
cintilantes como sóis!
Vivo apenas para vê-las
- não há nada como vós!

21 de dezembro de 2008

Tarde

Eram 3:24 da tarde
quando,
pelo olhar,
você me mostrou
mais verdades
do que eu ja tinha
visto,
ou
aprendido,
em todas as outras horas
anteriores
àquela.

Agora,
não há como esquecer.

5 de dezembro de 2008

Epistemologia


Nada
é
o
que
parece.
A
transitoriedade
está em tudo,
como se tudo
fosse um rio,
um imenso rio,
onipresente.

O que existe
já existia,
como um rio,
um outro rio
- e assim será,
sempre será,
tudo será
um vir a ser.

Pois tudo é rio
- até o rio.

30 de novembro de 2008

Magnitude

A
menor
partícula,
a parte
da qual
até
os
átomos
são feitos,
não
é,

eu acredito,

tão diminuta
quanto o são

a avareza,
o preconceito,
o ressentimento,
a maledicência,
o pessimismo
e a opressão,

se confrontados
com o que Deus,

por natureza,
sabedoria
e magnitude,

imaginou
e concretizou
como
início, meio e fim
da,
ainda,
incompreendida
experiência humana:

o amor.

18 de novembro de 2008

Senão

Não há,
senão,
a falta.

A falta.
A falta.
A falta.

A falta que você me faz.

6 de novembro de 2008

Erros

Eu não esqueci
o bem que você me fez.
Nem quanto eu errei
sem saber que errava.

Eu não esqueci.

Aprendi,
inclusive,
que há erros que ensinam,
há erros que esmagam.

Você
desenhava
o sol,
e
eu
o
escurecia.
Você
desenhava
o
céu,
e
eu
o
enegrecia.
Você
desenhava
a
luz,
e
eu
a
obscurecia.
Você
desenhava
a
lua,
e
eu
a
eclipsava.

Você
desenhava,
e
eu
apagava.
Eu não estava pronto.
Eu não estava pronto.
Eu não estava pronto.

Eu não estava pronto.

E,
agora,
eu me pergunto:
existirá perdão
para quem não se perdoa?

3 de novembro de 2008

Iguais

Acredite:
somos todos iguais,
apesar de
testosteronas,
progesteronas,
propriedades,
nomes
e sobrenomes.
Nossas diferenças
são apenas aparências,
caminhos diferentes para o mesmo destino.
Todo passo
de um homem
é um passo da humanidade,
caminhando,
acredite,
para um só final.

27 de outubro de 2008

Parte

Há tempos
uma energia
que os homens
(ainda)
não definem
vem se
construindo
e se desconstruindo,

invariavelmente,
obstinadamente,
inteligentemente,

e,
desse movimento
ininterrupto
e incorruptível,
nasceram
a matéria
e os pensamentos
dos quais eu mesmo,
e você,
indissociavelmente,
fazemos,
ou temos,
parte.

A quem,
pergunto,
poderíamos
agradecer?

26 de outubro de 2008

Meu coração

Meu coração,
às vezes,
parece querer chamar-me a atenção
- e bate de um jeito,
aparentemente,
normal,
mas que consegue fazer,
por um minuto
ou dois,
que eu pense e sinta
que há algo a mais,
que há algo a mais.

Ao mesmo tempo

Pode
parecer
incrível
que
eu
ainda
pense
nela.
Porém,
incrível
mesmo
é
saber
que
isso
me
acontece
ao mesmo tempo
em
que,
para
ela,
eu mesmo nem aconteça.

6 de outubro de 2008

Choveu

Choveu
na plúmbea tarde em que você disse
não me procure
- e o tempo expressou
o que eu não podia expressar.

Olhar

Existe um olhar
(acreditem: existe)
que,
assim como a energia,
realiza trabalho
e põe tudo em movimento.
Contudo,
esse mesmo olhar,
ainda que o mesmo,
ainda que energia,
também absorve,
consome
e exaure.

16 de setembro de 2008

Se

Se,
e apenas se,
alguém souber
quebrar o encanto
ou desencanto
que transformou
gente em estátua
e amor em gesso,
faça o favor,
urgentemente,
de arremessar
alguma pedra.

Agradecemos.

15 de setembro de 2008

Esperança

Se eu soubesse ontem
o que hoje eu sei
não deixaria
(como acabei deixando)
que a indiferença
me agrilhoasse
com tanta força
como o fez.
Mas nunca é tarde
(é o que dizem)
e há perdão
para os que vêem
enquanto há tempo
para se ver
(há esperança,
- ah! Esperança! -
palavra mãe
que alimenta,
envolve,
esquenta
e aconchega,
como faz Deus,
fazem amor e confiança).

8 de setembro de 2008

Aquele


entre mim
e o espelho
algum espaço em que as coisas não se definem
- e isso impede a solução
tanto deste
quanto daquele.
E toda vez
que nos olhamos
nos estranhamos
profundamente

nos estranhamos
individualmente

- e isso impede a solução
tanto deste
quanto daquele.

3 de setembro de 2008

A mão

A mão
com que você me feriu
não tinha
não tem
nem nunca terá
o peso
insólito
da mão
com que lhe estendi
o perdão.

2 de setembro de 2008

Ferida

Amo-te tanto, mas por não querer-me
é que desprezo, em mim, a minha vida!
Se não me queres, quero então perder-me
- e que o caixão proteja esta ferida.

Paz

Oh meu Senhor, minha esperança
de viver bem, sem sofrimento!
Oh meu Senhor, vê se te cansa
e ponha um fim ao meu lamento.

Meu Deus, meu Deus, peço com força:
encurte muito a minha vida!
Um acidente - a forca, a forca!
Mas, por favor, uma saída!

Tanto sofrer! Tanto sofrer!
Meu coração não pode mais!
Então, Senhor, quero morrer!
Quero morrer - deixa-me em paz.

Se sempre vivo amargurado,
se sempre vivo em solidão
(eu sempre fui tão desgraçado
- melhor morrer, oh coração!)

11 de agosto de 2008

Ilusão

Há dez minutos
um professor falou:
"A molécula de água
apresenta uma formação polar.
Se apresentasse uma formação apolar,
o nosso mundo seria completamente diferente".
Ouvi.
Refleti.
Concluí:
ilusão.
O meu mundo seria diferente,
apenas,
se você voltasse para mim.

10 de agosto de 2008

Santa Maria

Maria o nome e pelo qual fora escolhida
pelo Senhor, Nosso Senhor, o Pai da Vida,
a ser a mãe de quem nos ama sem ser quisto,
a Nossa Mãe, Santa Maria, a mãe de Cristo.

Maria o nome e o nome Santa por ter tido
o Santo Filho posto a graça de Jesus,
vendo mais tarde o Santo Cristo incompreendido
pregado aos pés, sangrado os pés - Sagrada Cruz.

Santa Maria, Virgem Mãe, Nossa Senhora,
santificada por Deus Pai, Nosso Senhor,
faze-te voz no vento em vão no Mundo à fora
e sopra a paz, e sopra a crença, e sopra o amor.

Madre Maria vê teu filho, nu, pregado,
crucificado, preso aos pregos pelas partes,
faze-te dom de inspiração sobre o pecado
e prega aos homens o perdão pelas más artes.

Maria o nome e o nome só por si de fé
e tanta fé que em nome só não caberia,
e tanto amor e tanta dor nessa mulher
- Maria Só Deus consagrou Santa Maria.

31 de julho de 2008

Nada

Coisas de crianças, gracinhas de bebês, o pôr ou o nascer do sol, a chuva na janela, as ventanias, as tempestades, o vôo do beija-flor, o canto dos pássaros, as formas das nuvens, o arco-íris, as florestas, os oceanos, as ondas, as conchas, as praias, as serras, as montanhas, as estradas, as poesias, as literaturas, os sons, as melodias, os doces, as comidas, os filmes, as partituras, as paisagens, os horizontes, os céus, as estrelas, as luas, os eclipses, os desenhos, as pinturas, os quadros, as sinfonias, as óperas, os teatros, as contas da matemática, os avanços da ciência, as pedras preciosas, os frutos, os filhos, as rezas e as religiões – nada se compara ao olhar, malicioso, de uma mulher bonita. Nada.

29 de julho de 2008

O banheiro era a sua única opção. O quarto não era apenas seu, alguém poderia abrir a porta e o suicídio seria a única saída – sabia, afinal, que o que fazia não era normal. Aliás, há algum tempo desconfiava que nada mais fosse normal. Porém, mesmo desconfiando que a normalidade também houvesse sido defenestrada do mundo, sabia que a sua mania era esquisitíssima. O banheiro – pensava – era a única opção. Trancava-se para tomar banho e, meia hora depois, saía feliz e sequíssimo. Secava-se bem, pensavam os familiares. Saía do banheiro, dirigia-se ao quarto, deitava-se na cama e ficava pensando que deveria parar com aquilo. Mas não dava conta. Era a melhor parte dos seus dias e há tempos praticava. Não havia prazer maior, refletia. Pensava, também, sobre a força e a coragem necessárias para largar aquela mania. Contudo, geralmente concluía que ruim mesmo era ter apenas o banheiro para tal prazer. Se morasse sozinho ou se pudesse trancar-se no quarto, desejava enquanto calculava o quanto poderia ser feliz. Mas não morava sozinho, não era o único a usar o quarto, dividia a casa com os familiares e não podia levantar qualquer suspeita. O banheiro, realmente, era a sua única opção. Conformado, usava-o todas as vezes que era possível – satisfeito, crente de que não era observado e seguro de que seu comportamento era tão secreto quanto anormal. Um dia, porém, essa segurança se desfez. Um dos seus familiares morrera usando o banheiro e, desde então, passou a pensar que a alma do infeliz ficara por lá, presa a casa pelas circunstâncias da morte. Desesperou-se. E o banheiro? Como o usaria? A alma do familiar poderia estar lá dentro, sentada, deitada, perambulando pelo ambiente ou em pé atrás da porta, parada, agachada ou de qualquer outra maneira perdida e penada. Sua privacidade estava acabada. No velório tal preocupação já lhe roubava a atenção e, exatamente por isso, nem se deu conta de que ele era o único vivo a não chorar pelo morto. Acreditava, cada vez mais, que a alma do sujeito ficara no banheiro, afinal, já o achava inconveniente e tinha certeza de que ele não perderia a oportunidade de bisbilhotar aos outros. Lembrou-se de uma vez em que o falecido perguntara-lhe por que se demorava tanto em seus banhos – e essa lembrança, por si só, fez com que se desesperasse mais ainda. Em um desses momentos de desespero, aproximou-se do caixão e, olhando fixamente para o defunto, disse-lhe em pensamento: “pensas que me enganas, mas sei o que planejas. Há tempos demonstras curiosidade pela minha vida e talvez tenhas desprezado o fato de que curiosidade mata, como dizem por aí. Porém, sei que ainda andas pela nossa casa, observando-me. Teus olhos não me enganam, desgraçado”. Findo o velório e enterrado o morto, voltou para casa e foi direto ao banheiro, certo de que com um pouco de esforço poderia perceber a alma do infeliz e expulsá-la de lá. Contudo, após inúmeras tentativas, deu-se por derrotado em seu belicoso projeto de reintegração de posse do banheiro da sua vida. A alma do finado parecia não querer discussão, preferindo permanecer em sua nova – e privilegiada situação – de expectadora silenciosa e inexpugnável das coisas. Não tinha saída. Não possuía meios para morar sozinho, nenhum outro cômodo da casa oferecia segurança aos seus propósitos e o banheiro, mesmo com a porta trancada e todas as suas paredes, não mais lhe servia como uma fortaleza de intimidade e privacidade. Assim, três dias após o velório, entrou em uma profunda e irreversível crise. Sua existência reclamou a falta do banheiro, tanto para o que era normal, quanto para o que somente a mais absoluta privacidade poderia permitir-lhe. A inutilização absoluta do seu espaço predileto fez com que seus nervos não agüentassem mais. Acessos, desmaios, chiliques e faniquitos tomaram conta do seu comportamento, tornando-o, de uma hora para outra, uma pessoa irreconhecível, assustadora e perigosa – completamente desequilibrada, como os próprios familiares começaram a dizer. Tal desequilíbrio atingiu o seu ponto máximo quando, no quarto dia após o velório, suas trêmulas mãos atearam fogo ao banheiro, incendiando-o com combustíveis que acreditava cremar espíritos. Foi a gota d’água para a sua família. Com parte da casa ainda em chamas, seus pais decidiram interná-lo em um hospital psiquiátrico e submetê-lo a tratamentos que prometessem o seu reequilíbrio. Antes mesmo do fim do incêndio, quatro homens o arrastaram até o hospital, obrigando-o a usar uma camisa de força e até mesmo uma fucinheira improvisada. A casa pegando fogo, os moradores desesperados, a vizinhança amontoada e uma pessoa sendo arrastada com uma fucinheira presa ao rosto proporcionaram aos expectadores uma cena interessante – e deprimente. Mais tarde, o momento em que o fogo foi apagado coincidiu com o instante em que, já no hospital psiquiátrico, a focinheira que o amordaçava foi retirada. Nenhuma palavra saiu da sua boca, mas, em seu olhar perdido, todas as tristezas do mundo apareceram. Contudo, tristeza maior estava por vir. Diagnosticado, na manhã seguinte foi transferido para o hospício da cidade, um velho manicômio que ficava em um prédio antigo e semidestruído, habitado por uma centena de pacientes que, além dos quartos, dividiam um único e apertado banheiro coletivo – razão de variados tratamentos improdutivos, incontáveis olhares desesperados e inúmeros instintos assassinos. Incendiários.

20 de julho de 2008

Criatura

Eu conheço tua cara,
Eu conheço tuas mãos,
Eu conheço tua fala,
teus amigos, teus irmãos.
Eu conheço tua casa,
Eu conheço teus andados,
Eu conheço teu destino,
teu presente, teus passados.
Eu conheço tuas fugas,
Eu conheço tuas falhas,
Eu conheço tuas rugas
e também tuas batalhas.
Eu conheço teus amigos,
Eu conheço teus enganos,
Eu conheço teus afetos
e também sei de teus planos.
Eu conheço tua letra,
Eu conheço tua sorte,
Eu conheço tua vida
(sei também da tua morte).
Eu conheço o que te inflamas,
Eu conheço o que contestas,
Eu conheço o que tu amas
e também o que detestas.
Eu conheço teus desejos,
Eu conheço teus amores,
Eu conheço tuas pedras
e também as tuas flores.
Eu conheço teus olhares,
tuas lágrimas...conheço!
E também ao respirares
teu suspiro Eu reconheço.
Eu conheço-te completo,
Eu conheço-te desfeito,
Eu conheço-te pretérito
e também mais-que-perfeito.
Ah figura inacabada,
transparente criatura:
Eu conheço teus defeitos
e também tua formosura.

18 de julho de 2008

O sexo

O sexo é o corte do sexo.

17 de julho de 2008

Real

Não existe realidade fora da eternidade - só o eterno é real.

11 de julho de 2008

Nós

Eu Nós,
Tu Nós,
Nós pós,
Nós sós.
Dois Nós
na voz,
na voz
dois nós.
Só Nós
na foz,
a sós,
mas sós.
Eu Nós,
Tu Nós,
Tu Nós,
Eu Nós.

2 de julho de 2008

O sol

Para Carolina

O sol,
no céu,
não tem,
eu sei,
qualquer
noção,
nem faz
idéia,
de que
os ares
que ali
estão
entre ele
e nós,
ali
estão,
entre ele
e nós,
porque
a luz
que sai
de nós
faria
ao próprio
um mal
imenso,
um grande
estrago,
a sua
estima.

21 de junho de 2008

Chão

Eu não sei o que acontece
quando as vista se escurece
e me faia o coração;
bate um medo desgraçado
de viver amargurado
por largar o meu sertão.
Toda noite numa prece
peço a Deus que se interesse
por nóis fio desse chão
- que crescemo co’as promessa
de político com pressa
de ganhar as eleição.
Peço a Deus do céu que ajude
dando a nóis muita saúde
pra seguir na procissão
- que é de fé e de esperança,
co’as muié e co’as criança
que vão dando a direção.
Que tortura a nossa vida,
não tem cama nem comida,
nem feliz recordação.
As lembrança são da fome
que matara nossos home
nas batalha pelo pão.
Nóis não sabe se tem sorte
por tá vivo ou se é co’a morte
que nóis vai tê solução;
mais nóis sabe que da terra
nóis num larga nem com guerra
nem com tiro de canhão.
Pode vir o mundo abaixo,
coronel com seus capacho,
que nóis vai brigar de mão:
nóis não ‘tamo de saída,
severina é nossa vida,
nóis não larga desse chão.

19 de junho de 2008

Senhor

Tira, Senhor, a minha vida
Tira, Senhor, o que quiseres
Tira, mas deixa-me as feridas
- marcas deixadas por mulheres

Tira, Senhor, a minha luz
Cobra, Senhor, os teus favores
Grave, porém, na minha cruz
Morto, ferido por amores

Ouça, Senhor, os meus apelos
- dores em forma de palavras
Pesos que fiz por merecê-los,
crendo, porém, que me salvava

Tira, Senhor, a minha sorte,
sorte de dores e fracassos!
Manda, Senhor, enfim, a morte
- quero dormir em seus abraços

12 de junho de 2008

Agradecido

Quando o semáforo fechou, parei o carro atrás de uma van. Ela era enorme e impedia a visão de qualquer outra coisa além do cruzamento. Era um sinaleiro lento, relativamente demorado e instalado em uma importante avenida da cidade. Quase todos os dias eu parava ali, consumindo alguns minutos de um tempo que eu não achava ruim perder. Era o tempo de trocar um cd, enviar uma mensagem ou ligar para alguém – tempo suficiente para realizar pequenas coisas que não ganhavam importância ao longo das outras horas do dia. Naquele sinaleiro, essas pequenas coisas mudavam de status e passavam a ser prioridade – pelo menos enquanto o sinal vermelho demorava-se em tornar-se verde. Naquele dia, dia em que uma imensa van obstruía a minha visão, um veículo funerário parou ao meu lado impedido de seguir em frente pela força ameaçadora de um radar interligado ao semáforo. Carregava um caixão, coroas de flores e era seguido por uma fila de outros carros com os seus pisca-piscas ligados. Não era a primeira vez que eu via um caixão, contudo, era a primeira vez que eu compartilhava com um morto um tempo dedicado à espera de um sinal para seguir em frente na vida. Naquele momento, enquanto um sinal vermelho impedia a passagem de vivos e mortos, os contrastes entre a nudez do dia-a-dia e os mistérios da morte tomaram a minha mente. Com um olho no semáforo e o outro no caixão, pensei sobre a minha própria vida, a provável vida daquele que estava no caixão e os caminhos, ou descaminhos, que o levaram a parar naquele cruzamento. Entretanto, ainda sob a ordem colorida de permanecer parado e em meio a pensamentos sobre o a vida e os seus trânsitos, logo a minha atenção voltou-se ao carro que estava parado atrás do veículo funerário. Era um carro pequeno, estava quase ao meu lado. Nele, ao lado do seu motorista, encontrava-se uma jovem entristecida que, moderadamente, deixava algumas lágrimas escorrerem pelo rosto. Não precisei mais do que brevíssimos instantes para notar que todos os ângulos do seu rosto eram perfeitos. Ela era linda. Seus olhos, claros e mareados, oscilavam entre alguns momentos fechados, consternados, e o olhar direcionado ao veículo funerário posicionado a sua frente. Nesses instantes, instantes em que seu olhar direcionava-se ao caixão, a sua dor era visível e, sua beleza, inquestionável. Confesso que, após avistá-la, nada mais ao meu redor chamou-me a atenção: a partir daquele momento, toda a minha sensibilidade voltou-se para a percepção e a compreensão daqueles extremos que, para mim, sintetizavam a experiência humana – a vida, a beleza, a dor e a morte. Tomado por pensamentos e sentimentos irresistíveis, continuei a observá-la até o momento em que o trânsito obrigou-me a colocar-me em movimento. Quando passei pelo semáforo, não mais senti que estava apenas dirigindo e prosseguindo com a minha vida – alguma coisa mudara em mim, e a um morto, e a uma bela, eu passara a ser eternamente agradecido.

4 de junho de 2008

That's the question

Desistir.
Existir.
Desistir.
Existir.
Desistir
de existir.
Desistir.
Esistir.
Desistir
de esistir.
Dexistir.
Esistir.
Dexistir
de esistir.
Desistir.
Esistir.
Desistir
d esistir
- eis a questão.

28 de maio de 2008

Procura

Nada, nada vale a pena:
a minh’alma tão pequena
não consegue sossegar
- vive em busca de um abrigo,
de uma ajuda, de um amigo,
de um motivo, de um lugar.

Enquanto

Viver, amor, só vale a pena se for pouco,
mas o bastante e nunca mais que o necessário:
o tanto quanto, por exemplo, vive o louco
acreditando ser um revolucionário.

22 de maio de 2008

Soneto de uma discussão

Oh Justo! Em só tormentos atiraste-me,
a fim de nem sei quê - pode explicar-me?
Abala-me saber que embora amaste-me,
açoita-me no entanto a mente e a carne.

Escuta-me, sê justo, apelo à morte,
a fim que não procuro-Te por mais!
Esqueço-me que nunca avistei sorte
- um túmulo, por fim, eu peço paz!

E assim, quando da morte eu me compor
- da Morte e apenas morte o corpo for -
Oh Justo! A vida deixe-me lembrar:

as horas - que são gotas de tristezas;
os dias - que se juntam, correntezas...
...Oh Vida ingloriosa de pesar!

13 de maio de 2008

Eu não valho o investimento

Gostaria que soubesses,
apesar de não quereres,
que se a morte me viesse
reclamando seus haveres,
eu diria "Morte, veja,
não há muito o que levar.
Leve a um verme que rasteja,
tens, assim, mais a ganhar.
Sou apenas restos, pó,

sou apenas estilhaços
- por favor deixe-me só,
o que queres com pedaços?
Não percebes que sou pouco,
que não valho os teus esforços?
O que queres com um louco?
Buscas vidas? Sou remorsos.
Corre atrás de ventanias
e terás muito mais sorte:
ganharás mais os teus dias
se buscares algo forte.
Sou remorsos e fraquezas,
um eterno sofrimento
- Ouve, Morte, com franqueza:
eu não valho o investimento."

11 de maio de 2008

Há tempos

Quando sua mulher engravidou pensou que, finalmente, viveria a experiência que justificaria sua existência. Já tinham se passado quase quarenta anos desde que viera ao mundo, porém, até aquele momento, sentia que nada era digno de nota ou consideração em sua vida. Agora, prestes a tornar-se pai, desconfiava de que as coisas ganhariam algum sentido. Sua insignificante existência ganhara a chance de terminar possuindo algum significado. Sabia que sua esposa o amava, e muito. No entanto, a paternidade trar-lhe-ia a presença inquestionável do amor incondicional de um filho ou de uma filha. Assim, a partir do momento em que soube que seria pai, seus pensamentos voltaram-se a uma só questão: seria menino ou menina essa única pessoa para a qual ele seria muito importante? Sentiu-se a pessoa mais privilegiada do mundo quando a vida deu-lhe a resposta. Há quase quarenta anos procurava entender o que era ser um homem e, agora, sem qualquer preparação, viu-se encarregado da maior responsabilidade que já haviam colocado sobre as suas não tão largas costas: cuidar de uma mulher – de uma criança, na verdade, mas que, caso ele obtivesse sucesso naquela estranha e novíssima tarefa, um dia viria a ser uma mulher. Contudo, a vida tinha lhe preparado um desafio ao qual não sabia se estava à altura. No mesmo momento em que ganhou uma filha, perdeu a mulher nas incompreensíveis complicações cirúrgicas que subtraem vidas inocentes em hospitais não tão inocentes assim. Em suas não tão espaçosas costas, a partir daquele momento, fora obrigado, também, a carregar o peso da solidão. Entretanto, nas madrugadas que se sucediam, tal peso era sempre arremessado para o alto pelo choro da filha reclamando a sua atenção. O silêncio da casa era invadido pelo gemido daquela pequenina que, quando deitada na cama ou em seus braços, parecia uma caixinha de surpresas. Todavia, a ausência de sua esposa era sempre presente. Sentia a sua falta e carregava uma tristeza sem tamanho por tê-la perdido. Doía não tê-la presente nas trocas das fraldas que juntos estocaram, na hora das mamadeiras, dos primeiros brinquedos, dos primeiros passos e das primeiras palavras daquela que era o produto em miniatura de um imenso amor. Sua esposa fazia-lhe falta e não havia, na vida, parentes ou amigos que amenizassem a sua ausência. Ela era – como ele acreditava – o caminho que o levaria a descobrir o porquê da sua própria vida. Mas o destino, artesão de surpresas, tirou-lhe um caminho e ofereceu-lhe outro – e, com o passar do tempo, suas cada vez mais cansadas costas viram fraldas virarem calças, chupetas virarem batons, brinquedos virarem amigos e as noites recheadas de gemidos virarem madrugadas mal dormidas à espera da garota. Dia após dia, sozinho, cuidou da criança e dos seus penteados, do seu guarda-roupa e dos seus namorados. Buscou-a na escola e levou-a em festas, às vezes seguro, outras preocupado, mas sempre disposto e com todos os zelos. Não reclamava nunca. Ano após ano, também sonhava quase todas as noites com a esposa e acreditava vê-la andando pela casa, conversando com a filha ou dormindo ao seu lado. Falava com ela tantas e tantas vezes que acabou por chamar a atenção dos amigos, dos vizinhos e de todos os que o viam falando com os ares e as paredes. Até a filha – que crescera acostumada com as estranhezas do pai – começou a achar que a loucura alcançara-o, acompanhando-o pelo mundo e corroendo-o por dentro. Sentado na varanda da casa, ou na cama do quarto, passou a ficar horas olhando a janela e os quadros da parede, encarando-os como se pudesse adentrá-los. Aos poucos, deixou de se relacionar com as pessoas e ampliou o tempo em que passava os dias conversando somente consigo mesmo, coisas desconectadas e incompreensíveis a todos que se aproximavam e o ouviam. Fechou-se em si mesmo e, com os olhos inexpressivos, assim caminhou para o fim da vida acompanhado apenas por aquela que desde sempre havia sido a sua mais constante e misteriosa companhia: a dúvida sobre o porquê da sua existência. Quando partiu, não deixou sinal de que havia resolvido a questão. Foi embora e, ao despedir-se da filha, chorou como não havia feito em todos aqueles dias marcados pela falta da esposa a cada fralda trocada ou madrugada mal dormida. No último momento, segurou a sua mão e a encarou como não o fazia há anos. De repente, cerrou os olhos e nunca mais voltou a abri-los, respirando por mais pouquíssimas vezes até que deixou de fazê-lo por completo – para muitos, para descansar em paz, mas, para a filha e todos que o conheciam bem, para apenas e tão somente voltar aos braços daquela que o esperava há tempos.

3 de maio de 2008

Esquerda

Nada lhe chamava tanto a atenção quanto a moça que trabalhava a sua esquerda. Aliás, a sua esquerda, somente duas coisas lhe chamavam a atenção: a moça, espetacular e maravilhosa como o cenário de um paraíso, e o seu coração, descompassado e desacertado como um relógio fora de hora. A moça, inconcebível, estava bem. Seu coração, no entanto, nem tanto. Andava estranho, desentoado. Contudo, não era ele, e sim a moça, mais à esquerda e admirável, que lhe chamava a atenção. Ela era perfeita. Tinha a beleza que nenhuma outra possuía e a sensualidade que ele sempre procurara nas mulheres que observara. Observara. Depois que a conheceu, não observou mais ninguém. Ela era, há anos, e a sua esquerda, o único mundo que existia. Um dia, e sem que esperasse, seu chefe o chamou em sua sala:

- Nossa empresa iniciou um processo de contenção de custos e, em função disso, não necessitaremos mais da prestação dos seus serviços. Agradecemos a sua compreensão e temos a certeza de que logo você estará recolocado no mercado. Quando Deus fecha uma porta, alguma janela se abre. Aproveite a oportunidade para realizar algum sonho: viaje, descanse, faça um curso, comece a pintar. Quem sabe do que somos capazes? Torceremos pelo seu sucesso e desejamos boa sorte. Adeus.

Seu coração, descompassado, quase se desesperou com a notícia. Quis bater com mais vontade, mas não mudou de entonação. Quem sabe fosse verdade aquela história da janela ou possuísse, entre os seus dons, a habilidade de pintar. Todavia, como era de se esperar, apenas uma coisa o incomodou: sair daquela empresa significava perder aquela moça, não mais tê-la a sua esquerda e não mais admirá-la. Isso era preocupante. Perderia, de uma vez, aquela moça e o seu mundo – a sua esquerda desencontrada. O que fazer?, se perguntava. Alguns meses após a sua demissão, e após viajar, descansar, estudar, pintar e procurar por janelas à esquerda e à direita, seu coração, adoentado, ordenou-lhe voltar à empresa que, em uma das suas salas, guardava a metade que lhe fazia falta. Obedeceu-o, ora feliz, ora angustiado, mas decidido a encontrá-la, aproximar-se e a revelar-se. Entretanto, verdadeira angústia sentiu quando adentrou à sala em que trabalhava com a moça e não a avistou. Meio triste, mas resoluto, perguntou aos ex-colegas o destino da mulher e obteve, de imediato, o inimaginável por resposta:

- Logo após a sua demissão, coisa de dois dias se não estamos enganados, ela nos procurou dizendo que queria o seu endereço. Não o tínhamos e não o encontramos nos arquivos da empresa – fato que, a princípio, estranhamos, mas que, mais tarde, compreendemos por completo. Também não sabíamos como encontrá-lo e não tínhamos a menor idéia de onde lhe procurar.

Nessa hora, seu coração e sua respiração aceleraram-se. Os ex-colegas, sem perceber, continuaram.

- Ouça o que ela mesma nos explicou: um dia antes da sua demissão, o chefe que lhe demitiu declarou-se a ela. Disse-se apaixonado e convencido a separar-se da esposa para com ela se casar. Contudo, segundo o que ela própria nos disse, o mesmo não obteve a resposta que desejava. Fora surpreendido por uma enérgica negatória que, dentre outras coisas, o fizera estremecer, perder a cabeça e derramar algumas lágrimas. Às pretensões descabidas com que ele a surpreendera, ela, corajosamente, opôs-se dizendo que, por você, nutria, secretamente, um sentimento que havia oscilado da admiração ao amor incondicional.

Naquela sala, e naquele momento, ninguém podia supor o que se passava em sua cabeça e em seu peito. Se soubessem, parariam. Não foi o caso.

- Segundo o que ela nos disse, tal colocação levou-o a perder a cabeça e a afirmar que iria lhe demitir, como realmente o fez, na esperança de lhe tirar de perto dela. Disse-nos, ainda, que, ajoelhada, implorou para que ele não lhe prejudicasse, que você não tinha culpa do que ela sentia e que nunca, em todos esses anos, você a havia percebido, mesmo ela estando tão próxima, tão perto, trabalhando, ali, a sua esquerda. Assim, após a sua demissão e sem que soubéssemos o que fazer, nossa colega começou a adoecer, a perder a vitalidade e a beleza que você conheceu. Um dia, como temíamos, ela não apareceu. Internou-se em um hospital para a realização de um tratamento que, infelizmente, não logrou êxito em restabelecer as forças que abandonaram o seu corpo pelas portas do coração despedaçado. Contudo, antes de falecer, ela nos enviou esta carta que, agora, lhe entregamos com a certeza de que esse era o seu destino.

Com a mão estendida, pegou a carta certo de que viveria a maior emoção da sua vida. Porém, desacertado como era, seu coração tinha outros planos. Impediu-o de sentir aquela emoção e, com carta e tudo, jogou-o à esquerda da sala que não passava de uma sala para os outros, mas que, para ele, fora o início e o fim de uma vida descompassada – descompassada, sem portas e sem janelas.

2 de maio de 2008

Por que não voltas?

Por que não voltas, oh produto do Destino?
A casa espera-te, teus doces prediletos...
As coisas tuas no teu quarto de menino
estão sofrendo em tua falta o desafeto.

Por que escolheste o que os teus olhos escurece?
O vento sopra-te os cabelos nesses ares?
A mãe sozinha que deixastes não te esquece
- amigos mais fizestes assim noutros lugares?

Antes pudera em teu lugar eu ter partido
e às vezes vejo-me em busca do caminho,
como se eu fosse em busca do não discutido
a Deus pedir que em teu lugar fosse eu sozinho.

Por que não voltas, oh dos brilhos os lampejos?
As coisas tuas não te querem desse lado...
...entregue a Deus o teu carinho nos teus beijos
e volte à casa de teu pai desconsolado.

27 de abril de 2008

Às letras

Das lembranças dos meus sonhos,
agradáveis ou medonhos,
não consigo te esquecer...
...fecho os olhos um segundo
e das coisas desse mundo
só consigo ver você.
Tenho tido pesadelos
que se alguém pudesse vê-los
mandaria me prender:
sonho vendo-te amarrada,
constrangida, raptada,
obrigada a me querer!

Lembro as várias tentativas
cuidadosas, criativas
que arrisquei pra te vencer.
Eu sorria gentilmente,
com poemas e presentes,
mas você não quis saber!
Graciosa me dizia
Adorei - Ah...eu tremia
de pavor com esse clichê.
Mas também achava graça
da tragédia, da desgraça
da minha vida sem você.

Ah...inútil esperança,
que idiota, que criança,
que iludido teimei ser!
Fiz de sons literaturas,
de poemas partituras,
mas, meu Deus, em vão - por que?

Hoje tenho muitos anos,
medos, mágoas e enganos
e outros tantos para ter...
...sempre aos homens darei cenas,
sempre às letras mais poemas
de tristeza e de sofrer.

23 de abril de 2008

Fecha os olhos

- Fecha os olhos, pensa e dize-me o que vem ao teu pensamento.
A ordem, apesar de estranha, soara-lhe sedutora. Gostava de trancar-se em seus próprios pensamentos e de senti-los. Tinha uma imensa facilidade em assim agir e, na verdade, difícil era saber o que era realidade e o que era fantasia em sua vida.
- Dize-me o que pensas. Dize-me.
- (silêncio)
- Dize-me o que pensas, conta-me o que enxergas quando fechas os olhos e o que vês em pensamento.
- (silêncio)
Não queria falar. Aceitara a proposta, a levara a sério, não encontrara dificuldade alguma em mudar-se para dentro de si, em desligar-se de tudo que o rodeava e reclamava a sua atenção, mas não queria falar. Deitado no divã como em uma cama já conhecida, não dava o menor sinal de por onde andava a sua imaginação.
- Dize-me...o que pensas? O que estás a pensar?
- (silêncio)
A sua vida inteira tinha lutado contra os pensamentos que, agora, pediam-lhe para revelar. Tinha desistido de lutar sozinho contra aquelas idéias e, exatamente por isso, resolvera procurar ajuda. Contudo, nunca imaginara que a primeira coisa que lhe pediriam fosse: “fecha os olhos, pensa e dize-me o que vem ao teu pensamento”. Não sabia o que fazer. A consciência do caráter reprovável das suas idéias estava em conflito com as sensações de prazer que elas lhe provocavam. Não sabia o que fazer, não sabia o que falar e sofria por não conseguir controlar os pensamentos que, apesar de condenáveis, causavam-lhe prazer. Também não entendia como podia gostar de imaginar-se fazendo o que qualquer pessoa, e ele mesmo, sabia ser censurável. Resolvera, então, procurar ajuda quando sentiu que estava prestes a tornar realidade o que, antes, era apenas imaginação. Há alguns dias começara a sentir-se tentado, efetivamente, a experimentar o que há muito aparecia em sua cabeça apenas como possibilidade. Estava prestes, na iminência – uma iminência que o jogara em uma crise de consciência sem precedentes em sua vida. Agora encontrava-se ali, deitado, com os olhos fechados e instigado a falar sobre aquilo que procurara ajuda para evitar. Deveria falar, deveria entregar-se?, pensava, em meio a outros pensamentos, enquanto, com insistência, sua analista lhe pedia:
- Dize-me o que te afliges e que te trouxeste até a mim. Não tenhas medo. Sabes que estou aqui apenas para te ajudar. Não te julgarei e nem te reprovarei. Preciso apenas te conhecer. O que acontece em teus pensamentos? O que vês quando os olhos fechas e começas a pensar?
- (silêncio)
Com os olhos fechados, aceitara a sugestão de imaginar todas aquelas coisas abomináveis. No entanto, de repente, um outro pensamento começou a lhe chamar a atenção: encontrava-se, agora, sob a influência de uma especialista em pensamentos – como poderia, então, mostrar-lhe o que pensava? Não estaria, assim, tornando-se vulnerável a uma pessoa com poderes para penetrar-lhe até à alma? Não estaria, desta forma, favorecendo a possibilidade de enxergarem-no como louco, doente e abjeto? Demorou-se em tais idéias até o momento em que concluiu que não deveria falar. Manteve os olhos fechados e, frente aos pedidos que lhe chegavam aos ouvidos – “vamos, dize-me, o que trazes na alma?” –, resolvera continuar calado como desde o início. Seria o único a saber o que pensava – e a sofrer, ou a ter prazer, com aquelas idéias que estava na iminência de colocar em prática. Quem sabe as colocasse e quem sabe as revelasse ao colocá-las em prática. Quem sabe.
- Vamos, dize-me, o que pensas agora?
- (silêncio)
Silêncio.

20 de abril de 2008

De bocas que nunca saem flores não me interessam as pedras.

Férias de janeiro

Tinha acabado de completar 21 anos. Não conhecia o mar e ganhara dos meus pais uma viagem ao litoral do Brasil. As férias de janeiro eu usaria para conhecer o nordeste – trinta dias, como meu pai dizia toda vez que me encontrava e felicitava-me pelo presente. Um dia, arrumadas as malas, dirigi-me ao aeroporto carregando roupas e intenções que nem cheguei a desdobrar. Viagens há que planos são despedaçados e, nesse meu caso, não só várias das minhas roupas tornaram-se desnecessárias, como, também, várias das minhas iniciais intenções foram abandonadas. Durante quase toda a viagem – e não exagero quando assim confesso – permaneci nua na casa em que me hospedei. Não precisei das roupas e, para falar a verdade, quase não as vi, quase não as pus, quase não as toquei. Foram semanas em pele viva, literalmente.

Meu namorado não pode acompanhar-me. Preso a inúmeros compromissos, preferiu encontrar-me mais tarde, quando fosse possível e fosse o momento em que achasse por bem. Entretanto, por obra do destino, ou por obra do demônio, esse momento não aconteceu e ele não pode, nem mesmo, buscar-me no aeroporto quando da viagem cheguei. Nesse dia, no entanto, respirei aliviada. Eu não queria encontrá-lo. Eu não era mais a mesma. Viajara uma, voltara outra, completamente outra e não havia motivos para reencontrá-lo.

Assim que desembarquei em terras nordestinas, recepcionaram-me os familiares do meu pai: tios, primos, primas, namorados, namoradas e todos os familiares que queriam me conhecer. Eram familiares gentis, primas sorridentes, namorados felizes e primos habilidosos. Habilidosos e gostosos, preciso dizer. Habilidosos com as palavras, corajosos nas intenções e poderosos com os argumentos – como logo eu veria e experimentaria. Coitada de mim. Entrosamo-nos rapidamente e não demorou a nos sentirmos plenamente à vontade uns com os outros. Tal entrosamento – por obra do destino, ou do demônio, como ando pensando – nos levou a passar a maior parte das minhas férias na casa de praia que possuíam. Os tios e demais familiares não puderam ir. As dívidas e os compromissos que possuíam não os liberaram – e, como parte de uma conspiração que nem sei dizer se diabólica ou divina, as primas e seus desinteressantes namorados não puderam passar mais de um final de semana na casa em que nos hospedamos. Foram embora e, visivelmente enciumadas, deixaram-me a sós com três dos seus prediletos primos – os gostosos, habilidosos e os cheios de planos, planos que não se despedaçaram por obra e graça do demônio, tenho certeza.

Se, no aeroporto, um tesão à primeira vista já tinha rolado entre eu e os três, os primeiros dias que passamos juntos tinham sido suficientes para dar-nos uma intimidade que naquela abençoada casa desdobrou-se em sacanagem pura. Puríssima. Eu nunca tinha visto, nem feito, nada igual. Além disso, em pouco tempo desenvolvemos uma cumplicidade instantânea que eu não tinha nem mesmo com aquele que havia ficado em São Paulo esperando o melhor momento para me reencontrar – há momentos em que quando alguma coisa dá errada, era, na verdade, a melhor coisa a acontecer.

A sós, completamente sós, passamos vinte e uma madrugadas naquela casa de praia. Já na primeira dessas madrugadas, nossas conversas e brincadeiras eram, obviamente, as relacionadas ao sexo. Nessa primeira noite, noite de intenções e arrepios indefiníveis, ousamos e nos provocamos sem fim e sem juízo, revelando o que era velado e incendiando o que era inflamável. E tudo era inflamável. Confesso que era maravilhoso ser a única mulher na casa. Tudo girava em torno de mim e, por três semanas, eu era o centro absoluto de todas as coisas, de todos os desejos e de todas as intenções, fossem as que fossem. Transei e gozei sem parar nesses dias. Ato continuum. Eu era uma só, às vezes parecia três, mas, muitas vezes, cheguei a ser mil. Descobri limites impensáveis do meu próprio corpo e experimentei sabores que somente os homens têm e que somente os homens poderiam ter. Por três semanas inteiras, por minutos e segundos que nunca esquecerei, fiz o que quis, fizeram o que quiseram e fizemos o que quisemos. Dias inteiros eu passei deitada, dias inteiros eu passei despida. Tive-os todos e a cada um em cada quarto e em cada canto daquela casa afrodisíaca. Não nos cansamos em nenhum momento e até as praias utilizamos, salgando-as, ainda mais, com os suores dos nossos corpos quase sempre insaciados.

Com cada um visitei uma praia diferente. Nessas horas, horas em que apenas um me acompanhava, vivi situações que, quando juntos, não experimentamos. Com um, nas pedras que avançavam pelo mar, descobri o gosto das mulheres. Com outro, entre ondas e algas, descobri o que é ser penetrada sob os olhares famintos de pessoas estranhas que nunca saberei o sabor que têm. Com o último, o mais ousado, aprendi o que é a dor no sexo, experimentando, agradecida, um prazer que os outros me negavam.

Um dia, infeliz e inevitavelmente, a viagem terminou. Despedimo-nos com carinho e com saudade, eu diria. Voltei para a minha casa, carregando, na consciência, a certeza de que eu não era mais a mesma. Sentia-me feliz, realizada, mas não sei como me explicar melhor. Não carregava nenhum remorso e tinha, tanto na mente, quanto no coração, a convicção de que pessoas diferentes passam por diferentes experiências em diferentes momentos da sua vida, tirando, de cada experiência, aprendizados que podem, ou não, demonstrarem-se úteis ao longo de suas existências recheadas de opções e escolhas. Eu tinha aprendido algumas coisas, e, como nunca, conhecia-me melhor e não estava preocupada em avaliar, ou julgar, os caminhos daquele aprendizado. Eu estava bem. Muito bem – bem demais, diga-se de passagem.

Assim que entrei em casa, fiz o que deveria ser feito: liguei para o meu namorado e dei fim a nossa história. E, antes mesmo que eu pudesse pensar em arrependimento, aceitei, de imediato, o novo presente que meus pais prometiam-me para o ano seguinte: conhecer, nas próximas férias, o litoral sul do país, aonde, há décadas, estavam os parentes da minha mãe. Confesso que arrepiei.

13 de abril de 2008

Estrofe

O amor que se conserva enternecido
em meio à desastrosa realidade
é fogo em que na chuva tem sabido
o gás que lhe reserva a eternidade.

10 de abril de 2008

Sentimento

Nunca havia experimentado um sentimento tão intenso. Nada em sua vida comparava-se ao que estava sentindo, coisas que ocupavam a sua mente, todo o seu peito e, sobretudo, o seu coração. Na verdade, nem mais podia referir-se a qualquer uma das suas partes como suas partes. O remorso tomava-lhe uma a uma, às vezes de maneira sutil, às vezes de forma estúpida e dolorosa, arrancando-lhe lágrimas, suspiros e toda a esperança que tinha na vida. Não possuía mais esperanças, nenhuma, nenhumazinha capaz de lhe dar qualquer força, apetite, equilíbrio ou alegria. Alegria – nem mais sabia o que significava tal sentimento, tão estranho e abstrato quanto uma pérola em meio à lama, em meio ao lixo. Quando fechava os olhos, inundava-se de arrependimentos angustiantes que lhe sufocavam a alma e torturavam-lhe o coração. O remorso – o pior sentimento com o qual já havia se encontrado, o mais negativo, o mais poderoso e o mais difícil de ser expurgado, colocado para fora ou deixado de lado – fundira-se a ele. Como queria sentir raiva, desprezo ou qualquer outra coisa. Mas só sentia remorso – remorso, remorso e remorso. Um remorso profundo, com grandes raízes, entranhado em seu peito e em todos os cantos da sua alma de dor. Se pudesse fazer alguma coisa, refazer os caminhos que à desgraça o levaram. Mas não. Todos os caminhos estavam impedidos e apenas o remorso a abraçar-lhe com força, por dentro e por fora e de todas as formas, deixando-o fraco, perdido em si. O que fazer?, perguntava. Mas nada enxergava a não ser o remorso, o pior sentimento, o mais cheio de dor, o da culpa opressora, o do ódio a si mesmo sem trégua e perdão. O que fazer? O que fazer?, perguntava e ouvia o remorso a dizer: “nada, rapaz, não há nada a fazer".

6 de abril de 2008

Escola

Era, na verdade, um aluno brilhante. Tímido, porém brilhante. Desde que entrara para a escola comportara-se como um pequeno gênio. Nunca faltara, nunca atrasara, nunca tirara uma nota ruim e nunca deixara de receber elogios de qualquer professor – fosse quem fosse. Era sempre lembrado nas reuniões de mestres e todos os pais citavam-no como exemplo de responsabilidade e seriedade. Tinha total controle sobre a utilização do seu tempo e cumpria a todas as tarefas que lhe passavam de forma correta e exemplar. Não perdia tempo, não desviava a atenção, não cometia erros e não perdia o ritmo nunca. Era, há anos, o primeiro da sala, o orgulho dos pais, o queridinho dos professores, a promessa da família e o modelo de filho para muitos e muitas. Um dia, entretanto, as coisas mudaram. Suas notas abaixaram e sua produtividade caiu. Todos que o conheciam ficaram preocupados. Pais, professores e até os psicólogos fizeram-se dezenas de perguntas na tentativa de entender o que teria acontecido. Estaria doente? Estaria com problemas? Teria cansado de ser o primeiro, de ser melhor? Teria brigado com os pais, com alguém? Teria a escola perdido a graça, perdido o encanto? Todas as possibilidades foram levantadas. Contudo, nenhuma resposta fora encontrada. Pais, mestres, psicólogos, pedagogos e até mesmo médicos não conseguiram descobrir o que havia acontecido. Sua já conhecida timidez havia piorado e de nada adiantava chamá-lo para conversar. Não respondia às perguntas. Não respondia, não se importava e não melhorava. Permaneceu em decadência até o dia em que se formou portando as piores notas da escola. Anos se passaram, milhares de novos alunos se formaram e nenhum outro o substituiu tanto nos melhores quanto nos piores momentos da sua vida de estudante. Continuou, para sempre, como o melhor, depois o pior, aluno da escola – assim como uma grande incógnita para todos que o conheceram e, uma vez, o admiraram. Uma grande incógnita, diziam. Até às vésperas da sua morte – anos e anos após a escola – a incógnita em que havia se transformado manteve-se inteira e sem sinal de resolução, sendo, entretanto, inesperada e repentinamente solucionada quando, um dia, em seus últimos momentos, uma explicação ofereceu a todos que o ouviram em suas últimas palavras:

- Chegou um dia e sentou-se a minha frente, entre eu e os professores. Tinha cabelos lindos e caíam sobre a minha mesa. Foi quando eu conheci o amor, disse isso a ela. Mas não me quis. Nunca me quis.

30 de março de 2008

Cunhado

Quem muito a conhecia sabia que ela estava com um olho na irmã e outro no cunhado. A irmã estava no caixão. O cunhado, ao lado, ao lado do caixão, velando a esposa. Ou ex-esposa, como agora ela fazia questão de pensar. Na verdade, há muito ela gostaria de pensar assim. Contudo, não esperava que fosse nessas condições: vela, velório e caixão. Ela, vestida de preto, sentada ao lado da irmã, da irmã morta. Um olho nela, um olho no cunhado. No ex-cunhado. Ele, também de preto, estava em pé. Em pé, do outro lado do caixão e com os dois olhos nele. Todo mundo podia ver que o mais novo viúvo da cidade estava chorando as lágrimas que tinha e as que não tinha, em um sofrimento que dava dó até mesmo nas pessoas acostumadas com os sofrimentos alheios. Ela, por sua vez, também não deixava dúvidas sobre os seus sentimentos: um olho na irmã, outro olho no cunhado. No ex-cunhado. Todos da cidade – até mesmo os mortos da família, inclusive a que estava de corpo presente – sabiam ou desconfiavam que ela era louca por ele. Louca mesmo. Desejava-o desde que o vira pela primeira vez e antes mesmo de a sua falecida irmã o conhecer. Conhecera-o e apaixonara-se primeiro, mas não pudera se lhe declarar. Quando estava a ponto de fazê-lo, a irmã já o namorava. Não por maldade, nem por descaso para com os seus sentimentos. Apenas e simplesmente por que as duas não conversavam sobre sentimentos. Eram irmãs, mas não confidentes. Nem mesmo mais tarde, quando começou a pairar no ar a desconfiança familiar de que a cunhada era apaixonada pelo cunhado, as duas trocaram qualquer palavra sobre o assunto. Tocaram as suas vidas sem dar maiores pistas sobre o que pensavam uma da outra e daquela situação – ora verossímel, ora verdadeira. De qualquer maneira, todas as possíveis dúvidas que existiam sobre o teor dos seus sentimentos foram, de uma hora para outra, dissipadas quando ela se levantou, apoiou as duas mãos na borda do caixão e, por sobre o corpo da falecida irmã, disse ao ex-cunhado:

- Lembro-me do dia em que lhe conheci e também do dia em que lhe roubaram de mim. Não que soubessem, mas também não que se importassem. A vida quis que minha irmã estivesse a minha frente, porém, e estranhamente, agora quer que ela esteja abaixo de mim. Outra fatalidade substituiu a fatalidade que nos separou – e pela porta que se abriu agora posso entrar em sua vida. Tenho em mim todo o amor que você perdeu e que agora gela abaixo de nós. Eu consigo lhe enxergar sendo tudo o que existe. Você é a perfeição, ou, então, é o seu símbolo – e também toda a beleza que eu sinto no universo das maiores maravilhas. Sua vida é o sonho que os anjos fantasiam e sua boca sopra o vento que os deuses aproveitam. Se talvez eu fosse um deles, ou se deuses não existissem, e, assim, eu não tivesse que, então, ser tão perfeita... Não espero que eu mereça ser a dona do universo – se eu sou um ponto nele, você é o infinito. Mas espero pelo dia em que todos os caminhos se encontrem e lhe façam enxergar que existo nesse mundo. Por que é que não me olha? O que há de tão ruim? Não mereço uma chance? Por que tem que ser assim? Olha um pouco a sua volta e enxerga a realidade – sou a única, agora sabe, que lhe ama de verdade. Qual, então, é o problema? O que há de tão errado? Não consegue se enxergar nem um pouco ao meu lado? Pense um pouco e me diga - o que há de tão errado? O que é que nos impede de vivermos lado a lado? Tenho visto a eternidade dar seus passos infinitos... quanto tempo ainda temos? Quantas vidas necessito?

Os presentes diriam que até a morta ficou sem saber o que fazer.

28 de março de 2008

Acabar

Oh Tristeza, minha amiga,
por favor, reflita e diga
por que queres me deixar?

Por que deixas teu amigo?
Quando não estou contigo
quase posso me alegrar...

“Onde vais que não responde?”
Oh Tristeza vais aonde?
Ouça amiga - não, não vá!

Mas se a ida é irreversível,
oh amiga, se possível,
deixe assim o seu lugar...

Foram tantas as mudanças
da tristeza à esperança
que cansei-me de mudar:

como o ferro não aguenta
(estica/encolhe e arrebenta)
eu também posso acabar.

25 de março de 2008

Rosa

Detestam-te as mulheres invejosas,
as loucas, indecentes, desvairadas,
as santas, meretrizes, corajosas
e as tantas solitárias namoradas.

Desejam-te os notáveis cavalheiros,
os pobres, promissores, milionários,
os músicos, poetas, engenheiros
e os muitos desposados solitários.

Dispensam-te os malucos infelizes,
narcisos, insensatos, insensíveis,
os tantos de esperanças desalmadas;

inspiram-se letristas e escritores,
artistas, desenhistas e escultores,
nas tantas formas tuas lapidadas.

19 de março de 2008

Alma

Tinha um pensamento fixo: "nada é tão ruim que não possa ficar pior, nada é tão ruim que não possa ficar pior, nada é tão ruim que não possa ficar pior!". Seu desespero era gigantesco e tal pensamento era o que tinha de mais positivo em sua mente. Mas foi suficiente. Se nada era tão ruim que não pudesse ficar pior, pelo menos ainda não tinham tampado o poço fundo, escuro e frio no qual se encontrava. Isso seria pior. Para o bem ou para o mal, comprovou que possuía uma grande capacidade de relativização das coisas e, ainda que sentindo como era triste e lastimável a sua situação, conseguiu enxergar o lado bom das tragédias pessoais pelas quais estava passando. Até surpreendeu-se quando se pegou admirado com a vida e a sua incrível capacidade de reinvenção de si mesma, aquela estória de que quando Deus fecha uma porta, abre uma janela. Não sabia exatamente o que fazer e nem por onde começar, mas, se nada era tão ruim que não pudesse ficar pior, provavelmente nenhuma esperança era tão pequena que também não pudesse ficar maior. Assim, ainda que machucado e enfraquecido, às vezes revoltado, às vezes conformado, sentiu que mudanças importantes haviam começado a ocorrer em um lugar que somente o fundo do poço foi capaz de lhe mostrar: o seu interior, o seu próprio eu, a sua própria alma - a única e indestrutível janela com a qual poderia contar.

15 de março de 2008

Uma estrela

Uma estrela me seguindo,
lá vem ela, lá vem vindo,
vem piscando, vem - não indo -
reluzente reluzindo.
Vem brilhando bem mais forte
- traz a vida ou traz a morte?
Vem piscando me assustando
- traz o azar ou traz a sorte?
Por que segue-me essa estrela?
Não sou brilho que lhe atrai!
Levo o brilho, pelas costas,
dessa estrela que não cai.
Quanta estrela tem o céu,
quanto brilho tem aquela!
Me persegue o brilho forte
- vela, vela, vela, vela.
Bela estrela...quanta luz
nesse brilho que me segue!
Essa estrela a que me opus
- pra que o brilho não me cegue -
traz, pesada, junto à luz
algo que me diz: “Não peque”.
Junto à luz, a luz da Cruz
- sou Jesus, Jesus, Jesus.

13 de março de 2008

Ilusões, desilusões

Ilusões, desilusões
Fossem mil meus corações
Mesmo assim não haveria

Tanto espaço no meu ser
para o mais e mais sofrer
que a vida me traria

Ilusões, desilusões
Fossem mil meus corações
Mesmo assim não caberia

Em meu peito toda a dor
que da vida, que do amor,
que dos céus eu ganharia

Ilusões, desilusões
Fossem mil meus corações
Até sei como seria!

Mais dilemas, mais amores
Mais angústias, mais as dores...
...nada, nada mudaria!

Saudade

Saudade é o que sentimos quando roubam nosso coração, o ladrão é pego em flagrante, mas não vive preso com a gente.

De nós

A vida exige que façamos isso
que façamos aquilo
mas como fazer isso
e/ou aquilo
sem saber o que fazer de isso
de aquilo
e, principalmente,
de nós?

9 de março de 2008

Mentindo


O que vejo, o que sinto
nada tem algum sentido
mente a vida ou eu minto
(mas alguém está mentindo)
as pessoas são estranhas
e eu mesmo não me entendo
as tristezas são tamanhas
(estarei enlouquecendo?)

8 de março de 2008

Madalena

Eu não sei se você lembra... lembra?
Eu passava em procissão.
Lhe atiravam pedregulhos, duros!
Não tardava a morte não.

Invejavam-lhe os cabelos, pêlos,
as mulheres de razão.
E lançavam-lhe desejos, pejos,
mas Jesus lançou-lhe a mão:

"Considero-lhes impuros,
puros consideram-se porém,
mas se ofertam pedregulhos, duros,
a Deus Pai ferem também!"

Eu não sei se você lembra... lembra?
Levantaram-lhe do chão.
Desarmaram-se das pedras, pedras...
Foi-se embora a procissão.

És


És os mares condensados
numa gota simplesmente.
És os ares comprimidos
num só átomo existente.
Tens o rastro do infinito
e do sol és a nascente...
...és, no tempo, a eternidade
e o amor que ninguém sente.

7 de março de 2008

O que procuro

Quanto mais eu te procuro
mais eu penso em desistir
- é que andando sob o escuro
não sei bem o que seguir.
Não há pista que me guie,
não há luz que me aponte
nem alguém em quem me fie
- começar...nem sei por onde!
Eu não sei se, realmente,
é possível te encontrar;
se não for, infelizmente,
o que mais vou procurar?
Já pensei "será que existe
quem eu vivo procurando?"
"Quem procura, quem insiste,
sempre acaba se encontrando".
O que os olhos não enxergam
não conseguem encontrar
( passo a vida procurando
um lugar pra me matar)
Quanto mais eu te procuro,
mais eu penso em desistir
- é que andando sob o escuro
não sei bem o que seguir.

6 de março de 2008

Milionésimo

Puxou o gatilho. No milionésimo de segundo que se seguiu, lembrou-se de cada boca já beijada e de cada corpo sobre o qual já havia deitado o seu não tão desejável próprio corpo. Mas não havia mais tempo. Pela primeira vez, conseguiu não arrepender-se de uma decisão tomada. E nem havia como.

5 de março de 2008

Último soneto

Descansam, meu Senhor, sobre o Teu peito,
as asas do meu amor, meu pensamento...
Enquanto eu por aqui procuro um leito,
descansa em colo Teu meu desalento.

Amei, sabe o Senhor, descontrolado,
e amei com todo o corpo a coisa amada,
e a mente, ah como amou, despreocupada,
o amor que o coração tornara amado!

Agora, oh meu Senhor, busco em meu quarto
um leito - eu vou sozinho, agora eu parto -
e enfim, peço ao Senhor que apenas chame

a mim - que apenas quero senão amar-Te,
e assim, que o coração morra de enfarte,
e a mente, inconsequente, de derrame.

Desde sempre

Nasce o dia...não demoro a sentir
mil tristezas e angústias no meu ser.
Desde sempre, veja só, não vou mentir...
...sofro assim e não consigo me entender.
Todos dizem que a vida me sorri
e que tudo o que importa eu possuo!
Que tristeza verdadeira eu nunca vi
e que tudo o que importa eu destruo!
Meus amigos e pessoas que eu amo
se esforçam em mostrar-me um caminho
em que eu possa percorrer me encontrando
e deixando de viver triste e sozinho!
Mas as ruas e estradas que percorro
nada dão-me a não ser desesperança!
E por mais que muitos venham em socorro...
...eu não sinto que a alegria me alcança!
Faz um tempo que procuro explicação
para todos os meus tristes sentimentos
- e parece que o meu pobre coração
têm respostas para todos os tormentos,
as angústias, os dilemas e a dor
que ocupam e afetam minha vida
- essa coisa sem sentido e sem cor,
absurda e muitas vezes dolorida.
Tive sonhos, esperanças e desejos
- tantos quantos a ilusão podia dar-me -
mas as dores, frustrações e pesadelos
conseguiram, sem querer, desanimar-me.
Passo os olhos pelas coisas desse mundo
e não vejo qualquer coisa interessante
- nem amores, nem qualquer outro assunto!
Por que devo, por que devo ir adiante?

4 de março de 2008

Sem essência

Não me importa se me entendo,
não me importa se me ouço,
eu espero, pelo menos,
não estar ficando louco
- apesar de estar achando
mais provável que esteja
( eu acabo me matando
antes mesmo que eu me esqueça)
Sou eu mesmo quem tortura
minha pobre existência
- sou disforme, sem desenho,
sou vazio e sem essência.

Reversos

Pois são meus dias, senão dias, senão versos
- entrelaçados decassílabos reversos -
naturalmente idealísticos nostálgicos
em consonância a moderníssimos defeitos.

Pois são meus dias senão versos destilados
- inconsequentes desatinos impensados -
entre a tristeza e da tristeza à desventura,
entre a loucura e da loucura ao desespero.

Entre a loucura e da loucura ao desespero,
entre a tristeza e da tristeza à desventura,
inconsequentes desatinos impensados
- pois são meus dias senão versos destilados.

Em consonância a moderníssimos defeitos,
naturalmente idealísticos nostálgicos,
entrelaçados decassílabos reversos
pois são meus dias, senão dias, senão versos.

Presente

Escrevo à noite e quando durmo estou pensando
e te lembrando enquanto penso o sono espanto:
dói-me a cabeça, o corpo sente em se cansando,
explodem dores que torturam-me, dói tanto!

Espero o dia, o sol levanta-se às claras,
mas vou versando-te com luzes de uma vela:
meus olhos fecham-se se chego em vezes raras
à claridão que rompe as frestas da janela.

Em versos longos de cadência calculada
busco rimar-te à perfeição que dá-te forma...
...mas imperfeitos são meus versos, quase nada:
somente Deus com versos santos te contorna.

Nesse entretempo que separa as duas noites,
naturalmente me tortura a Natureza:
meu coração se bate apanha desse açoite
e se respiro inspiro os ares da tristeza.

O tempo logo o tempo, tempo, tempo, passa
e chega o tempo de mostrar-te o meu presente;
te encontro enfim, mas ouço assim com ar de graça:
"Estou com pressa. Eu sinto muito, infelizmente..."

3 de março de 2008

O que posso esperar?

Quase já não há estrelas
no imenso céu vazio
que existia como um lenço
a cobrir as nossas vidas
Mesmo as últimas estrelas
existentes no espaço
já não são observadas
- não há olhos para elas
O vazio onipresente
cheio apenas de lembranças
torna tudo insuportável
(para onde devo olhar?)
Tudo encanta e assusta
e tristeza é a palavra
que ocupa o coração
como quem rouba os olhos
de quem tem apenas olhos
- quase já não há estrelas
(o que posso esperar?)

2 de março de 2008

Sobre o amor

- Faz muito tempo que não lhe vejo feliz assim! O que houve?
- Estou apaixonado...
- Sério?? Nunca lhe vi tão bem!
- O amor rejuvenesce...
- Quando não enlouquece, sim! Rejuvenesce, revitaliza e redireciona a vida das pessoas...
- Sim... É verdade! Sinto-me bem, feliz e cheio de planos!
- Interessante! Você está exultante! Fico feliz! Queria que o mesmo ocorresse comigo, mas não tenho mais idade para isso...
- E desde quando essas coisas da vida têm idades próprias para acontecer? Há algum Ministério do Amor com uma tabela indicativa das idades e horários propícios para alguém entrar em nossas vidas e roubar-nos o coração? Quando crianças também não éramos atingidos por paixões inesperadas que tiravam-nos o sono, atrapalhavam-nos as provas, levavam-nos ao choro e faziam-nos sonhar, cantar e escrever cartinhas e cartinhas de amor sem fim?
- Que eu me lembre, sim!
- Então! Não há uma regra! O que nos atinge cedo, também pode nos atingir tarde!
- Pode ser, pode ser...mas não me aconteceu.
- Você se permitiu? Aposto que não! Com esse papo de que não tem idade...
- (silêncio)
- A alma é uma espécie de casa...as janelas têm de estar abertas para a luz entrar...
- Como aconteceu com você?
- Bom...Eu estava vivo e, então, aconteceu!
- (risos) Compreendo...Faz sentido...
- Se para morrer basta estar vivo, para apaixonar-se não é diferente!
- É, faz sentido também! Mas...você não tem medo?
- Medo de quê? De morrer?
- Não! De apaixonar-se!
- E por que eu haveria de ter medo?!
- E se der errado?
- E se der certo?
- Mas as chances de dar errado são maiores...
- Quem pode dizer? Nem mesmo na matemática os resultados das operações correspondem sempre ao esperado...
- É verdade. Mas os erros das operações matemáticas não envolvem pessoas! Um número não pode machucar-se, sofrer, chorar...
- Óbvio! Mas também não sente solidão, carência, não se cansa de estar só e não tem opinião nenhuma sobre o fato de ser par, ímpar... Prefiro arriscar. Não sou um número e, se fosse, preferiria ser par!
- Entendo.
- Se der errado, não terá sido por falta de tentativa, de acreditar na minha sorte! Além disso, se der errado, não acredito que será algo capaz de me derrubar ao ponto de me tornar inválido para o resto da vida! E prefiro uma casa cheia de luz do que obscura e fria!
- Exagerei no meu medo...Desculpa.
- Tudo bem. Sei que sua preocupação é bem intencionada. Porém, lembre-se sempre de uma coisa: grandes projetos envolvem grandes riscos! E haverá projeto maior do que o amor?
- Fora pagar as contas, ter um emprego e viver com saúde...creio que não!
- (risos...) O amor é ainda maior, pois, sem ser por ele, para que ter contas, empregos e, principalmente, saúde?!?
- (silêncio novamente)
- Além disso, há outra coisa... Estou apaixonado! Completamente apaixonado...
- (sorriso) E muito, percebe-se!
- Mais do que todas as minhas outras vezes juntas! Juntas e multiplicadas!
- Como aconteceu? - assim, além de você estar vivo e tal...
- Não sei... Como eu disse, eu estava vivo e aconteceu! Quando notei, havia se passado um segundo entre eu pertencer somente a mim mesmo e, em seguida, pertencer à outra pessoa! Foi uma questão de olhar...
- Olhar?
- Sim (suspiro...) - Como assim olhar? Olhar outra pessoa?
- Não...de eu ter me apaixonado pelo olhar de uma pessoa...
- Pelo olhar?
- Sim, a princípio... Depois do olhar veio o sorriso. Depois do sorriso, o falar. Depois do falar, o pensar, e, quando dei por mim, a questão era o existir da pessoa!
- Nossa... Uma pessoa ou um anjo? (sorriso)
- Um anjo a que chamamos pessoa! Alguns segundos após...
- Mas nem tudo é felicidade...Apesar de estarmos apaixonados e certos do nosso amor, a família dela não aceita o nosso relacionamento. Ameaça até mudá-la de cidade...
- Por quê?!? - Diz que é por causa da nossa diferença de idade.
- De novo a questão da idade...
- Os homens só pensam em números... Tolos...
- E o que vocês pensam a respeito?
- Pensamos que nos amamos! Aliás, pensamos e sentimos, indubitavelmente!
- E pensam em resistir?
- Óbvio!!!
- Mas compensa o transtorno?
- Duas vezes óbvio! Um pelo o meu amor a ela e outro pelo amor dela a mim! Quem sabe o futuro nos dê outras obviedades!
- (silêncio)
- Não entendo essa preocupação com idades, tempos e momentos... Quantos gênios revelaram-se na infância e quantos outros somente no fim da vida? Quantas vezes a humanidade foi sacudida por fenômenos extraordinários e inesperados, sem sinais e sem avisos, e quantos outros ainda estão por ocorrer? Em relação aos dramas da existência humana, crianças podem ter respostas ou algo a nos ensinar tanto quanto adultos e velhinhos... E se doenças e desgraças não têm hora certa para acontecer, paixões e amores também não! Ou seja: não há regra!!!
- Mas são coisas bem diferentes entre si...
- Sim! Eu sei! Bem diferentes! Doenças e desgraças são coisas para serem lamentadas! Amores e paixões festejadas!Bem diferentes mesmo!
- (silêncio)
- (indignação)
- O que a família dela diz?
- Diz que a nossa diferença de idade é muito grande e que sou muito velho para ela!
- (curiosidade)
- 15 anos...Sou 15 anos mais velho... Nem é tanto assim!
- Sim...não são 30 ou 40 anos, mas já são alguns bons anos...
- E daí? Não é a diferença de idade entre duas pessoas que faz com que essas duas pessoas deixem de ser equilibradas, responsáveis ou capazes de discernir entre o certo e o errado! O que importa é a maturidade ou imaturidade delas! E uma coisa eu posso lhe garantir: ela é uma pessoa madura!
- Certeza?
- Certeza! Não lhe falei que depois do falar veio o pensar...?
- Falou.
- Então! A pessoa é um poço de maturidade! Maturidade e responsabilidade! Sabe exatamente o que quer, não faz nada que não queira, tem autocontrole, conhece os seus limites, respeita-os, faz-me respeitá-los e procura superá-los refletindo e dialogando, comigo e consigo mesma...
- Parece madura...
- E é! Sei o que estou dizendo e sei o que estou sentindo...
- Mas você não acha que, com essa diferença de idade, os mundos de vocês são bastante diferentes?
- Acho! E também acho que foi exatamente por isso que nos apaixonamos!
- Você não disse que foi por causa do olhar dela, no seu caso?
- Sim! Um olhar que só encontrei fora do meu mundo!
- (silêncio)
- Fora do meu mundo, meu mundo de tédio e rotina, velhas idéias e velhos objetivos, regras, mesmices e nenhuma alegria e pouquíssima emoção...
- (mais silêncio)
- Mas eu preciso lhe dizer que, mesmo que eu vivesse no melhor dos mundos, eu não conseguiria resistir àquele olhar e àquele existir extraordinário e mágico!
- Por quê?
- Por que, em toda a minha vida, em nenhum outro olhar eu percebi tanto brilho e tanta calma, tanta doçura e tanta honestidade, pureza e ingenuidade, tanta luz e tanta força... Em nenhum outro olhar percebi tanto amor e tanta fé, tanta meiguice e tanta paixão acumulada e preparada para, enfim, se libertar... Pode lhe parecer estranho, mas de alguma forma senti-me envolvido e penetrado por aquele olhar como nunca outro me envolvera e penetrara e, às vezes, não raras vezes, tive a sensação de que palavra alguma seria necessária para que com ele eu me entendesse... Como se eu estivesse a admirar o mais belo pôr-do-sol e, de repente, fosse ele que me contemplasse!
- (silêncio)
- (silêncio profundo) - Isso nunca me aconteceu...
- Não tem como eu lhe dizer o que é desejar abraçar o sol.
- (surpresa)
- (suspiros)
Quase um minuto após:
- O que você pensa em fazer?
- Vejamos se consegue me entender: creio piamente que a vida preparou-me tal situação! Como uma espécie de benção, fui agraciado por Deus com o advento desse amor há anos desejado e esperado - talvez por séculos! Portanto, sinto-me relativamente tranqüilo em relação ao futuro de todos esses acontecimentos... O universo pode estar me aplicando o maior dos seus golpes, mas minha alma conforta-se na sensação de que os arquitetos do destino encontraram a inspiração que lhes faltava para o grande projeto da minha vida! Acredito que algo muito maravilhoso está para me acontecer e aquele olhar me inspira isso. Nele tenho me encontrado e reconhecido meus caminhos, meus sentidos...
- Mas...e a família dela? - Como eu lhe disse, tenho a sensação de que a vida está cuidando disso. Não creio que nos encontramos por acaso! Mas, se assim foi e se o acaso é um Deus, não sinto que estejamos na situação de simples dados em suas mãos! Olhares existem e sempre existirão, mas a mesma gravidade que atrai os dados ao chão também determina a posição em que caem. Portanto, de qualquer forma, alguma coisa nos aproximou! Há uma força nos ligando!
- Apaixonados enxergam razão em tudo...
- Talvez apaixonados sejam os únicos que enxerguem!
- A paixão cega...
- Pode ser que sim! Mas entre a cegueira da paixão e a tirania da razão, prefiro a primeira! A essa altura da minha vida, antes cego e feliz do que convencional e angustiado! Além disso, minhas razões podem ser diferentes das razões de qualquer outra pessoa... Quem pode me dizer que a paixão não é a razão que necessito, considerando-se razão como motivo que necessito para ser feliz e me encontrar?
- (silêncio)
- Além disso, além do fato de me encontrar apaixonado - o que por si só já é motivo para eu desejá-la e não deixá-la -, não devo satisfação à ninguém. Sou livre! Sou livre e quero me prender somente a ela, somente a ela...
- Mas, pelo visto, ela não é livre como você...
- Já conversamos sobre isso e concluímos que, se ela não é livre hoje, amanhã será! A família dela não estará sempre presente em sua vida - um dia faltará. Ces't la vie. Não que desejemos isso ou esperemos por isso. Mas não temos tempo a perder e queremos viver esse amor acompanhando-o em seu crescimento! E, justamente pelo fato de que um dia ela encontrar-se-á totalmente livre, sabemos que nada poderá nos impedir! O futuro é promissor e, diária e mutuamente, nutrimo-nos de forças e esperanças! É só uma questão de tempo e paciência...
- Você quer dizer muuuuita paciência, né?
- Com certeza. Mas temos os nossos meios (quem não os tem?), nossas estratégias, nossos momentos, nossas válvulas de escape e nossas crenças - quando são os olhos da alma que enxergam o futuro, ele não parece tão distante! Ninguém entende melhor a questão da relatividade do tempo do que a alma, essa maratonista de eternidades!
- (reflexão)
- Existem sacrifícios que, frente às recompensas prometidas e esperadas, são desprezíveis, desprezíveis... Além disso, meu passado me encoraja a esperar por ela...
- Como assim?
- As dores que experimentei no passado - além daquele olhar que já lhe expliquei - dão-me força para acreditar que, finalmente, os meus sonhos virarão realidade!
- Não tinha que ser ao contrário? As dores do passado não deveriam desencorajá-lo, como se estivessem sempre a lhes dizer que nada vai ser diferente e que tudo vai dar errado?
- Compreendo, mas tenho algo a lhe dizer! As mesmas dores que me torturaram, me machucaram e me desiludiram, também me ensinaram alguma coisa! Se, durante um tempo, ocuparam o meu coração, também o amadureceram com a sua presença! Tornaram-no mais paciente, menos ansioso, mais compreensivo e tolerante! Isso também tem a ver com a minha pré-disposição em esperar pela felicidade...Na verdade, aprendi que a felicidade não se encontra na outra margem do rio. Atravessar ao rio é a felicidade! Nesse sentido, cada pontada de dor que senti em meu coração foi uma aula que a vida me deu. Passei por um verdadeiro curso, integral e intensivo, e, agora que a grande professora Dor se foi, sinto-me preparado para a verdadeira felicidade e percebo que o espaço, outrora ocupado por ela, nesse instante encontra-se preparado para ser preenchido pelos bons sentimentos da vida: a paixão, o amor...
- (reflexão profunda)
- Agora eu quero amar em paz e, já ouviu isso?, se o amor é por nós, quem será contra nós?
- Já...Mas, se você aprendeu tanta coisa com o seu passado, se saiu amadurecido e consciente de todas essas experiências, não seria mais coerente procurar alguém mais próximo a sua realidade?
- Amigo, estou seguro. Não sinto que algo me falte. Hoje tenho o que preciso - e mais do que isso: tenho o que sempre quis! Além disso, um amor não se procura...encontra-se! Vou sair por aí procurando pelo o quê? Por olhares envolventes e penetrantes, carregados de ternura e emoção? Quantas vezes poderei me enganar, me confundir e me iludir? Será difícil compreender que o natural é mais autêntico e verdadeiro, melhor do que o encomendado? Será difícil aceitar que a espontaneidade é o melhor terreno para os verdadeiros sentimentos? Será impossível compreender que, à cada segundo à espera de alguém mais próximo a minha realidade, eu posso estar perdendo a chance de mudar a minha realidade? O que o mundo me deu é tudo o que preciso para desenvolver a minha vida!
- E se a família dela radicalizar?
- Radicalizamos também!
- Como assim?
- Uma reação parecida com a dos cristãos na época da perseguição ao cristianismo, na Roma antiga... Quanto mais perseguidos eram, mais cristãos tornavam-se! A violência com que eram escorraçados fortalecia suas convicções, amadurecia as suas crenças e oxigenava a disposição que tinham para lutar por seus ideais!
- Mas isso não fará com que o relacionamento de vocês vire um palco de guerra? Como poderão cultivar esse amor em meio a um tiroteio por parte dos que o condenam?
- Da mesma forma que os cristãos o fizeram...não desistindo e conquistando aliados na medida que a todos convenciam de que o que sentiam era sincero e belo.
- Muito idealismo...
- Veja por esse lado: imagine se, os cristãos a que me referi, tivessem desistido das suas lutas. Imagine se tivessem abaixado suas cabeças e abandonado suas crenças em função do medo, da opressão e da desesperança... Imagine se tivessem abandonado seus sentimentos, negando o que tinham no coração e fazendo-se surdos aos apelos da alma. Imagine. Como viveriam? Como, à cada dia, levantar-se-iam de suas camas e encarariam as tarefas do dia e as cobranças da vida? Sentir-se-iam dispostos, vigorosos e animados? Como poderiam acreditar em novos sonhos ou novos ideais, tendo a alma a lamentar suas próprias fraquezas e não se esquecendo, como é de se compreender, o brilho do Deus a que amavam e a vitalidade das crenças a que devotavam suas vidas? Como cuidariam dos mínimos detalhes da existência tendo as mentes e corações a cobrar-lhes, exigir-lhes e a lembrar-lhes, permanentemente, a alegria e a segurança com que lutavam e resistiam à destruição dos seus mais caros valores e mais puros planos? Puríssimos planos? Como acreditariam em qualquer outra coisa, poderiam manter abertas as janelas da alma, propícia à novas luzes e a novos banhos de calor? Como, após sucumbirem à covardia e à intolerância, poderiam, novamente, construírem fortalezas de amor e compreensão? Responda-me: como, novamente, seriam fortes e obstinados após tamanha negação ao que tinham de mais íntimo, verdadeiro, sincero, arraigado e honesto em suas próprias almas? Como? Como?
- Mas...
- Como se dedicariam a Deuses impostos, introduzidos em suas vidas por forças exteriores e estranhas, indiferentes aos imprescindíveis mecanismos internos e subjetivos que fundamentam a convicção e a legitimidade necessárias aos processos de adoração e dedicação? Como seriam suficientemente fortes para resistirem às dúvidas e inquietudes da alma frente a todas as questões e tentações que, naturalmente, surgem nas vidas de todos aqueles comprometidos com uma causa ou um princípio? De onde tirariam as energias e a segurança indispensáveis a quem se propõe atravessar terras e terremotos em nome do que é invisível, incorpóreo e impalpável como uma crença ou uma idéia? Como construiriam templos e os manteriam úteis e vigorosos se não tivessem solos firmes e consolidados nos quais fixassem seus próprios pés e fundamentassem suas opiniões e visões de mundo, seus valores, referenciais e a própria fé? Nem por arrogância, nem por teimosia. Nem por orgulho ou inflexibilidade...a única força a movimentar aqueles a que estou me referindo era a certeza da pureza honesta das suas convicções e, mais inabalável ainda, a certeza de que, caso sucumbissem às violências e martírios a que eram submetidos enquanto perseguidos e escorraçados, nunca mais conseguiriam levantar a cabeça, abrir os olhos, entreolharem-se e, principalmente, olhar para dentro de si mesmos! Nunca mais! Nunca mais!
- (silêncio)
A luminosidade multicolorida do dia começava a ceder espaço ao fundo escuro com que a inevitável noite cobriria a cidade e os seus horizontes quando voltaram às palavras:
- É assim que você se sentiria caso vocês não pudessem viver esse amor?
- Exatamente. Sentiria-me amputado, impotente, frustrado e injustiçado! Ela também, acredite! Preciso lhe dizer: a essa altura da minha vida, após tantos tombos e tropeções, creio que estou mais certo do que sinto, das coisas que penso e das coisas que quero... Não vou negar - também sinto uma imensa ansiedade, uma imensa vontade de não perder essa chance de ser feliz! Não quero abrir mão do que tenho de mais valioso, hoje, em minha vida! Entendo que posso parecer exagerado, lunático ou infantil quando insisto em afirmar que a enxergo como a chance final que a vida me deu para ser feliz... Concordo que ninguém deve carregar a responsabilidade de ser a felicidade de outrem. Mas é verdade que, dia após dia, minha felicidade liga-se mais e mais à existência dela e a sua própria felicidade! Como partes que se complementam e se enriquecem, se fortalecem e se alimentam de uma cumplicidade compartilhada, recíproca.
- Você já me convenceu da sinceridade e da profundidade dos seus sentimentos e, pelo o que diz, os sentimentos dela não são diferentes. Maravilhoso isso! Mas, enxergando-os como partes que desejam se complementar e, como estou a entender, mais do que apenas se complementar - enxergando-os como partes que desejam se fundir... acredita mesmo que será possível tamanho envolvimento tendo o mundo a lhes condenar?
- O mundo não! Parte dele! Uma parte importante mas não eternamente importante, afinal, sempre chega o dia em que tomamos as rédeas da nossa própria vida! Contudo, responder-lhe-ei de uma outra forma: possível e impossível não são condições - são estados de espírito! E você parece não saber das coisas que são capazes os espíritos apaixonados, envolvidos pelo o amor! Não estamos desejando viver sem respirar ou tocar o sol com as próprias mãos! Não queremos fechar os olhos e flutuar, nem falar com os mortos ou ressuscitá-los! O que queremos não pertence a ninguém, a não ser a nós mesmos e a nenhum outro: o nosso amor e os nossos desejos, os nossos sonhos e as nossas almas...o nosso tempo...a nossa força...e, principalmente, as nossas vidas! Quem tem o direito de decidir o que outra pessoa pode sentir? Com qual legitimidade alguém pode se opor à felicidade de outros?
- Não me oponho à felicidade de vocês, você sabe. Estou apenas ajudando-lhe a refletir sobre a situação em que se encontram.
- Ajuda de grande valia e por ela lhe sou grato! O mundo seria outro, melhor e mais humano, se todos se dispusessem a dialogar, a refletir e a compreender as posições estranhas aos nossos umbigos.
- Por que não fogem?
- O destino nos aproximou e até ao cenário escolheu. Se aqui nos uniu, aqui nos terá! Além disso, aos caminhos que nos apresentaram devemos respeito e consideração. É verdade que nosso amor não deixaria de crescer em qualquer parte do mundo. Isso depende das nossas almas e não do espaço em que estamos. Mas, no mesmo chão que nos ofereceu as primeiras dificuldades, queremos fincar as raízes de um amor que não teme enfrentá-las! O mundo pode ser vasto, imenso, ter paraísos e oásis como belos esconderijos. Porém, maior é o nosso mundo e não há como escondê-lo. Aqui nos amamos, aqui ficaremos...
- Amém!
- (suspiros)
- Tenho que ir... A noite já avança e meu pacato mundo já sente a minha falta! Espero encontrar-lhe amanhã ou depois!
- Quem sabe amanhã após a minha festa. Aliás, lhe darei o endereço e ficaria feliz se você comparecesse! Provavelmente, lá você poderá conhecer o meu amor!
- (sorriso) Que bom! Aceito o convite! Mas, diga-me: a festa...trata-se de quê?
- Meu aniversário!
- Mesmo? Legal! Há tempos não participo de uma festa assim! Se você fosse mulher eu não perguntaria, mas, como não é...(risos)...quantos anos fará?
- Advinha!
- 80?
- Não! 85!

Fila

Ele não tinha mesmo para onde olhar. Do que adiantaria encará-la se as coisas a ele vociferadas eram, aparentemente, verdadeiras? O chão era, mesmo, o seu único refúgio. Olhava-o e pensava em como estava sujo. Porém, como essa questão não fazia parte da pauta de discussões, não tinha coragem de fazer qualquer comentário nesse sentido. É verdade que algumas vezes tentou levantar os olhos, procurando observá-la. Entretanto, a raiva com que as palavras eram a ele dirigidas fazia-o desistir de qualquer diálogo. Era mais seguro apenas ouvi-la e continuar refletindo sobre o quão sujo o chão poderia ficar. Talvez ele mesmo estivesse se sentindo como aquele chão, sujo e pisoteado. Pisoteado por uma cavalaria de argumentações que desconfiava serem legítimas e que troteavam sobre a sua alma confusa e esfarrapada. Confusa, esfarrapada e vagabunda, como a si mesmo admitia e não fazia questão de negar. Porém, mesmo comparando-se ao chão mais sujo que já havia visto, não se sentia o mais vagabundo dos homens. Sabia que era um deles, mas não acreditava estar na cabeceira da lista, liderando outros tantos e tantos sujeitos indignos. Entre um grito e outro, ponderava: "se todos os homens considerados desgraçados forem realmente desgraçados, em que lugar eu estaria em uma fila entre o céu e o inferno?". Pensou por alguns instantes e considerou que o seu lugar seria mais ou menos ao meio da fila, nem tão próximo aos primeiros, os mais inocentes, os que já estavam no céu, nem tão junto aos mais infelizes, os dos últimos lugares, os condenados ao inferno. Quase esboçou um sorriso quando concluiu que teria a colocação de um homem comum, absolutamente mediano, nem muito santo e nem demoníaco, como gritava, aos seus ouvidos, aquela louca que ele mal conhecia. Mas não sorriu. Fazia força para não aumentar a ira daquela descontrolada que mais parecia um megafone enraivecido e com forças sonoras para além de um bilhão de decibéis. Era melhor não piorar a situação. Um sorriso seu, mesmo que amedrontado, tímido ou assustado, poderia atear fogo à situação e fazer com que as coisas fugissem ao controle. Contudo, a certa altura dos acontecimentos, se era muito ou pouco vagabundo, o lugar em que ocuparia naquela fila e a inigualável sujeira do chão em que se encontrava deixaram de ser os objetos das suas preocupações mais imediatas. Notou que a gritaria tinha cessado e que a ensandecida a sua frente havia partido para uma espécie de luta livre cujo único objetivo era arrebentar a sua cara. A moça, pelo que lhe parecia, passara a achar melhor expressar a sua extraordinária indignação também pelas mãos e pelas pernas, feito que levou a cabo através de uma descontrolada sucessão de murros e pontapés executados com excessivo desequilíbrio. Aparentemente, o seu objetivo era apenas um: matá-lo. Pelo que podia perceber, tal objetivo era uma espécie de promessa que não poderia deixar de ser realizada. Talvez – e ele mesmo não sabia dizer – a garota encarasse a coisa a partir de alguma perspectiva religiosa, alguma espécie de fundamentalismo. De qualquer maneira, após alguns bofetões, sentiu seu rosto ardendo e um pouco de sangue escorrendo pelo canto da boca. De repente – e apesar dos chutes, murros, tapas e pontapés – um pensamento tomou-lhe a atenção: não sabia se era merecedor de tudo aquilo pelo que estava passando. Não sabia se merecia apanhar tanto e se, realmente, era merecedor de tantas violências e tantas acusações desequilibradas. Mas não demorou a resignar-se e a acreditar que, certamente, teria dado motivos para aquela raiva incontrolável. Assim, àquela moça aceitou oferecer os seus ouvidos e as suas dores como pagamento pelos pecados que nem tinha certeza se havia cometido. Imaginou que, deste modo, poderia estar contribuindo para que aquela mulher reencontrasse o equilíbrio. Não sabia, entretanto, que esse pagamento seria considerado baixo, muito aquém do que a ofendida julgava ser merecedora. De qualquer forma, nem teve tempo para considerar essas questões. A enfurecida que lhe agredia havia perdido o controle e o fizera voltar as suas atenções ao chão, rachando-o e sujando-o de sangue com a sua cabeça arrebentada. Mas nem sentiu. De uma hora para outra, perdera a consciência e passara a não entender mais nada. Quem era? Onde estava? O que estava acontecendo? Que fila era aquela? Que lugar era aquele, tão quente, tão quente?

Outrora


Há muito tempo não dormia mais em paz. Abria os olhos a toda hora, nervoso, contrariado. Sentia que ela o traía e isso o deixava desorientado. Sentado no canto da cama, observava-a, calado, procurando a coragem de falar-lhe a respeito. Às vezes, também, pensava em sufocá-la. Só não sabia se com as mãos ou o travesseiro. Mas não tinha coragem. Preferia morrer ao invés de matá-la, afinal, morte por morte, a sua já era quase um fato. Traído, humilhado, desrespeitado – era quase um morto, pensava. Passava as noites imaginando o que teria feito de errado, o que deixara faltar e o porquê de terem chegado àquela situação. Mas, ao invés de respostas, deparava-se apenas com mais e mais pensamentos angustiantes, dúvidas inquietantes e sentimentos dilacerantes. Amava-a, e não era pouco. Por isso mesmo, julgava-se morto ao sentir-se traído, enganado, ao sentir que outros – outros, meu Deus, outros! – tinham a sua mulher até mais do que ele mesmo. Ao saber que outros – quem? quantos? onde?!? – com ela transavam enquanto ele trabalhava, viajava e houvesse ocasiões para ser enganado. Muitas vezes, no meio da noite, suado e ofegante, acordava sobressaltado, querendo falar com ela. Falar ou sufocá-la, com as mãos e o travesseiro, como havia decidido caso fosse mesmo eliminá-la. Mas se continha. Não tinha coragem, então se continha. Quando se decidia por não sufocá-la, pensava em questioná-la, em perguntar-lhe a verdade, em ajudá-la a confessar, a implorar perdão e a entregar os nomes dos bois. Mas não tinha coragem. Acovardava-se ao imaginá-la desabafando, confessando e apresentando nomes. Nomes, um plural que o torturava e que não saía de sua mente. Atordoava-se, desesperava-se, pensava nos filhos e continha-se por eles. O que poderia fazer? O que deveria ser feito? Pensava nos filhos, nos amigos, nos vários vizinhos e nas mentiras da vida, do seu casamento, nas estórias difíceis e mal acabadas de todos os tempos anteriores aos dois, nas inúmeras brigas e inúmeros atos de dor e maus tratos, nas mil violências de um contra o outro e em todas as chances e sonhos perdidos, nas desilusões, nas desesperanças e no medo do fim, de um fim sem retorno. Calava-se. Entupia-se com o ódio, a dor e o ciúme, engolindo a seco, com medo e impotência, a vontade de saber a verdade. De vê-la partindo. Partindo ou morrendo. Se tivesse coragem, pensava. Se tivesse coragem, nem mão, nem travesseiro. Um só tiro – passou a calcular – um só tiro, e o problema estaria resolvido. Um só tiro, ficava repetindo para si mesmo, perturbado, quase visualizando uma arma em sua mão outrora amável e carinhosa. Um só tiro, um só tiro, um só tiro, pensou e repetiu milhares de vezes, obstinado, obcecado, desesperado, até o dia em que decidiu dar não só esse tiro, mas outros também, e com aquela mão, outrora, amável e carinhosa.