30 de março de 2008

Cunhado

Quem muito a conhecia sabia que ela estava com um olho na irmã e outro no cunhado. A irmã estava no caixão. O cunhado, ao lado, ao lado do caixão, velando a esposa. Ou ex-esposa, como agora ela fazia questão de pensar. Na verdade, há muito ela gostaria de pensar assim. Contudo, não esperava que fosse nessas condições: vela, velório e caixão. Ela, vestida de preto, sentada ao lado da irmã, da irmã morta. Um olho nela, um olho no cunhado. No ex-cunhado. Ele, também de preto, estava em pé. Em pé, do outro lado do caixão e com os dois olhos nele. Todo mundo podia ver que o mais novo viúvo da cidade estava chorando as lágrimas que tinha e as que não tinha, em um sofrimento que dava dó até mesmo nas pessoas acostumadas com os sofrimentos alheios. Ela, por sua vez, também não deixava dúvidas sobre os seus sentimentos: um olho na irmã, outro olho no cunhado. No ex-cunhado. Todos da cidade – até mesmo os mortos da família, inclusive a que estava de corpo presente – sabiam ou desconfiavam que ela era louca por ele. Louca mesmo. Desejava-o desde que o vira pela primeira vez e antes mesmo de a sua falecida irmã o conhecer. Conhecera-o e apaixonara-se primeiro, mas não pudera se lhe declarar. Quando estava a ponto de fazê-lo, a irmã já o namorava. Não por maldade, nem por descaso para com os seus sentimentos. Apenas e simplesmente por que as duas não conversavam sobre sentimentos. Eram irmãs, mas não confidentes. Nem mesmo mais tarde, quando começou a pairar no ar a desconfiança familiar de que a cunhada era apaixonada pelo cunhado, as duas trocaram qualquer palavra sobre o assunto. Tocaram as suas vidas sem dar maiores pistas sobre o que pensavam uma da outra e daquela situação – ora verossímel, ora verdadeira. De qualquer maneira, todas as possíveis dúvidas que existiam sobre o teor dos seus sentimentos foram, de uma hora para outra, dissipadas quando ela se levantou, apoiou as duas mãos na borda do caixão e, por sobre o corpo da falecida irmã, disse ao ex-cunhado:

- Lembro-me do dia em que lhe conheci e também do dia em que lhe roubaram de mim. Não que soubessem, mas também não que se importassem. A vida quis que minha irmã estivesse a minha frente, porém, e estranhamente, agora quer que ela esteja abaixo de mim. Outra fatalidade substituiu a fatalidade que nos separou – e pela porta que se abriu agora posso entrar em sua vida. Tenho em mim todo o amor que você perdeu e que agora gela abaixo de nós. Eu consigo lhe enxergar sendo tudo o que existe. Você é a perfeição, ou, então, é o seu símbolo – e também toda a beleza que eu sinto no universo das maiores maravilhas. Sua vida é o sonho que os anjos fantasiam e sua boca sopra o vento que os deuses aproveitam. Se talvez eu fosse um deles, ou se deuses não existissem, e, assim, eu não tivesse que, então, ser tão perfeita... Não espero que eu mereça ser a dona do universo – se eu sou um ponto nele, você é o infinito. Mas espero pelo dia em que todos os caminhos se encontrem e lhe façam enxergar que existo nesse mundo. Por que é que não me olha? O que há de tão ruim? Não mereço uma chance? Por que tem que ser assim? Olha um pouco a sua volta e enxerga a realidade – sou a única, agora sabe, que lhe ama de verdade. Qual, então, é o problema? O que há de tão errado? Não consegue se enxergar nem um pouco ao meu lado? Pense um pouco e me diga - o que há de tão errado? O que é que nos impede de vivermos lado a lado? Tenho visto a eternidade dar seus passos infinitos... quanto tempo ainda temos? Quantas vidas necessito?

Os presentes diriam que até a morta ficou sem saber o que fazer.

Um comentário:

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Adoro vir aqui, já faz parte da minha alma[ pausa para minha alma sorrir] suas poesias seus textos são ótimos.
Aproveito para dizer que fiz uma postagem nova,se puderes apareçe por la;marthacorreaonline.blogspot.com.Um abraço