2 de março de 2008

Improrrogável


Ainda sob o impacto da notícia, procurou refúgio no recanto incorruptível da memória. Se haveria de morrer, não queria mais perder um segundo sequer com aquele presente insuportável. Queria o passado, as suas recordações, as ocasiões mágicas em que a vida havia valido a pena, os seus jovens anos, os seus amores, as suas viagens, os longos e apertados abraços em todos com os quais compartilhara as suas alegrias e tristezas, os seus muitos e marcantes momentos. Queria as festas, as danças, os incomparáveis dias e as inacreditáveis noites em que se perdia e se encontrava, às vezes só, às vezes não. Queria a juventude e os seus acontecimentos, desejando revivê-los mesmo que somente assim, relembrando-os. Sentada à beira da cama, os pés sobre os chinelos e as mãos sobre as pernas, ouvia o vento balançar as grandes janelas que havia em seu quarto – o quarto em que dormia há décadas e que, há décadas, via-a adormecer e acordar mais velha. Olhava as paredes, às vezes fixando os olhos em alguns dos variados quadros nelas pendurados. Uma dezena de quadros das mais distantes épocas e com as mais variadas tonalidades de cores, temas e tempos. Quadros que contavam parte da sua história e que, agora, a sua inconformada memória procurava reviver em cada mínimo detalhe e em cada único sabor. De vez em quando, com os olhos fechados, suspirava como se levasse ao peito as recordações de uma vida inteira: as paixões desenfreadas, os amores impossíveis, as experiências inacreditáveis... Buscava a tudo. Queria a tudo. Mas não podia, já não podia – já era tarde. As doenças adiantadas suplantavam-lhe as forças. Tinha o corpo incurável e os minutos condenados. As carnes como trapos e as horas como foices. Vigor apenas nas lembranças, absolutas e intransigentes, e na consciência de que se encontrava completamente só em seus últimos momentos – só, e tendo em quadros, móveis, paredes e lembranças as suas únicas testemunhas daquele fim inadiável e daquela noite improrrogável. Improrrogável.

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