2 de março de 2008

Despropósito

Pobres, miseráveis de toda cor e de toda idade, pessoas que nada tinham a não ser desgraças e carências, fizeram-no perceber que as suas próprias desgraças eram bençãos e as suas carências, ilusões. Outrora, penúria e privação eram palavras cujos sentidos desconhecia, sentidos que seus abastados dias encarregavam-se de eliminar das suas cotidianas experiências. Entretanto, o contato com pessoas a quem a vida tinha oferecido apenas sofrimentos e provações fizera-o desejar alargar o campo dessas suas cotidianas experiências para além do círculo de hipocrisia e individualismo a que estava habituado. Finalmente – pensava – não mais respirarei esse ar infestado de falsidades e mentiras que há muito me envolve. Cada vez mais, e de uma forma que não conseguia explicar e resistir, sentia amadurecer dentro de si uma antipatia inominável por tudo que, desde sempre, cercara-o com ostentação e estardalhaço: festas, roupas, viagens, jantares, bebidas, automóveis, mulheres, negócios, prazeres, prazeres e mais prazeres, inconsequentes e exagerados. Começara a acordar sentindo-se angustiado, devedor de atenção aos que não tinham atenção, portador de sortes e facilidades a que não tinha direito. Também começou a sentir-se farto de comodidades e confortos que, ao invés de aliviá-lo, davam-lhe a impressão de incriminá-lo e envergonhá-lo. Sentia que algo mudara dentro de si. Algo profundo e importante, capaz de colocá-lo em confronto com tudo o que era e desejava. Com uma facilidade que não conhecia, passou a olhar para dentro de si mesmo e a sentir repulsa pelos sentimentos e comportamentos materialistas que, há séculos, desenvolvia. Sentiu que não bebia – afogava-se; que não comia – empanturrava-se; que não se vestia – ornamentava-se para os intermináveis desfiles de arrogância, soberba e indiferença a que fora acostumado ao longo da sua extravagante e improdutiva vida. Ao longo do dia, começou a questionar as suas atitudes, a modificar os seus objetivos e a abandonar carros, reuniões e elevadores para direcionar-se a quem a sua nova consciência orientava-lhe: àqueles a quem a vida não havia sorrido, os desvalidos, desamparados de toda sorte, desaventurados e esquecidos, abandonados e condenados à desditas, desgraças e aflições. Amigos e parentes começaram a evitá-lo, considerando-o doente ou enlouquecido. Os mais próximos, antes de sumir, aconselhavam-no a não ser ingrato com as alegrias e recompensas com que a vida brindava a sua feliz existência. Mas não transigia. Não queria mais saber daquela vida que levava – falsa, fútil, leviana. Não mais jantares recheados de vaidades, nem mais amigos escolhidos por interesses – refletia. Nem mais um segundo dedicado ao supérfluo, nem mais um dia oferecido à ganância. Se tinha tempo, gastaria-o com quem necessitasse de ajuda e não mais consigo mesmo, como sempre fizera desperdiçando irrecuperáveis oportunidades de não ser tolo e egoísta. Algo mudara. E mudara com tranqüilidade, sem angústias e sem tormentos, passivamente. A antipatia aos seus antigos comportamentos remodelou-o por completo, dando-lhe uma nova alma e tornando-o um novo homem – um novo homem. Desprendeu-se do que era material e cultivou o desapego. Desfez-se de carros, roupas, aparelhos e parafernálias que dominavam a sua vida transformando-o em coisa ou em escravo dessas coisas. Transformou a sua casa. Dividiu quartos, salas e corredores entre homens, mulheres e crianças necessitadas de cuidados e carinhos. Organizou campanhas, arregimentou pessoas e passou a dedicar-se, crescentemente, aos cuidados daqueles que levava para casa e ajudava a ressuscitar. Mudara completamente. Era uma nova pessoa: realizada e feliz como nunca havia sido, lúcida e sensível como nunca lhe acontecera. Estava bem e jamais pensava em voltar atrás. Desejava, na verdade, radicalizar a sua nova vida, ajudar a mais pessoas e viver para esse fim, realizado, determinado e nunca mais iludido. Nunca mais iludido – pensava, entre aliviado e maravilhado – nunca mais iludido com o despropósito de uma vida que não era voltada para o amor.

Nenhum comentário: