2 de março de 2008

Fila

Ele não tinha mesmo para onde olhar. Do que adiantaria encará-la se as coisas a ele vociferadas eram, aparentemente, verdadeiras? O chão era, mesmo, o seu único refúgio. Olhava-o e pensava em como estava sujo. Porém, como essa questão não fazia parte da pauta de discussões, não tinha coragem de fazer qualquer comentário nesse sentido. É verdade que algumas vezes tentou levantar os olhos, procurando observá-la. Entretanto, a raiva com que as palavras eram a ele dirigidas fazia-o desistir de qualquer diálogo. Era mais seguro apenas ouvi-la e continuar refletindo sobre o quão sujo o chão poderia ficar. Talvez ele mesmo estivesse se sentindo como aquele chão, sujo e pisoteado. Pisoteado por uma cavalaria de argumentações que desconfiava serem legítimas e que troteavam sobre a sua alma confusa e esfarrapada. Confusa, esfarrapada e vagabunda, como a si mesmo admitia e não fazia questão de negar. Porém, mesmo comparando-se ao chão mais sujo que já havia visto, não se sentia o mais vagabundo dos homens. Sabia que era um deles, mas não acreditava estar na cabeceira da lista, liderando outros tantos e tantos sujeitos indignos. Entre um grito e outro, ponderava: "se todos os homens considerados desgraçados forem realmente desgraçados, em que lugar eu estaria em uma fila entre o céu e o inferno?". Pensou por alguns instantes e considerou que o seu lugar seria mais ou menos ao meio da fila, nem tão próximo aos primeiros, os mais inocentes, os que já estavam no céu, nem tão junto aos mais infelizes, os dos últimos lugares, os condenados ao inferno. Quase esboçou um sorriso quando concluiu que teria a colocação de um homem comum, absolutamente mediano, nem muito santo e nem demoníaco, como gritava, aos seus ouvidos, aquela louca que ele mal conhecia. Mas não sorriu. Fazia força para não aumentar a ira daquela descontrolada que mais parecia um megafone enraivecido e com forças sonoras para além de um bilhão de decibéis. Era melhor não piorar a situação. Um sorriso seu, mesmo que amedrontado, tímido ou assustado, poderia atear fogo à situação e fazer com que as coisas fugissem ao controle. Contudo, a certa altura dos acontecimentos, se era muito ou pouco vagabundo, o lugar em que ocuparia naquela fila e a inigualável sujeira do chão em que se encontrava deixaram de ser os objetos das suas preocupações mais imediatas. Notou que a gritaria tinha cessado e que a ensandecida a sua frente havia partido para uma espécie de luta livre cujo único objetivo era arrebentar a sua cara. A moça, pelo que lhe parecia, passara a achar melhor expressar a sua extraordinária indignação também pelas mãos e pelas pernas, feito que levou a cabo através de uma descontrolada sucessão de murros e pontapés executados com excessivo desequilíbrio. Aparentemente, o seu objetivo era apenas um: matá-lo. Pelo que podia perceber, tal objetivo era uma espécie de promessa que não poderia deixar de ser realizada. Talvez – e ele mesmo não sabia dizer – a garota encarasse a coisa a partir de alguma perspectiva religiosa, alguma espécie de fundamentalismo. De qualquer maneira, após alguns bofetões, sentiu seu rosto ardendo e um pouco de sangue escorrendo pelo canto da boca. De repente – e apesar dos chutes, murros, tapas e pontapés – um pensamento tomou-lhe a atenção: não sabia se era merecedor de tudo aquilo pelo que estava passando. Não sabia se merecia apanhar tanto e se, realmente, era merecedor de tantas violências e tantas acusações desequilibradas. Mas não demorou a resignar-se e a acreditar que, certamente, teria dado motivos para aquela raiva incontrolável. Assim, àquela moça aceitou oferecer os seus ouvidos e as suas dores como pagamento pelos pecados que nem tinha certeza se havia cometido. Imaginou que, deste modo, poderia estar contribuindo para que aquela mulher reencontrasse o equilíbrio. Não sabia, entretanto, que esse pagamento seria considerado baixo, muito aquém do que a ofendida julgava ser merecedora. De qualquer forma, nem teve tempo para considerar essas questões. A enfurecida que lhe agredia havia perdido o controle e o fizera voltar as suas atenções ao chão, rachando-o e sujando-o de sangue com a sua cabeça arrebentada. Mas nem sentiu. De uma hora para outra, perdera a consciência e passara a não entender mais nada. Quem era? Onde estava? O que estava acontecendo? Que fila era aquela? Que lugar era aquele, tão quente, tão quente?

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