12 de junho de 2008

Agradecido

Quando o semáforo fechou, parei o carro atrás de uma van. Ela era enorme e impedia a visão de qualquer outra coisa além do cruzamento. Era um sinaleiro lento, relativamente demorado e instalado em uma importante avenida da cidade. Quase todos os dias eu parava ali, consumindo alguns minutos de um tempo que eu não achava ruim perder. Era o tempo de trocar um cd, enviar uma mensagem ou ligar para alguém – tempo suficiente para realizar pequenas coisas que não ganhavam importância ao longo das outras horas do dia. Naquele sinaleiro, essas pequenas coisas mudavam de status e passavam a ser prioridade – pelo menos enquanto o sinal vermelho demorava-se em tornar-se verde. Naquele dia, dia em que uma imensa van obstruía a minha visão, um veículo funerário parou ao meu lado impedido de seguir em frente pela força ameaçadora de um radar interligado ao semáforo. Carregava um caixão, coroas de flores e era seguido por uma fila de outros carros com os seus pisca-piscas ligados. Não era a primeira vez que eu via um caixão, contudo, era a primeira vez que eu compartilhava com um morto um tempo dedicado à espera de um sinal para seguir em frente na vida. Naquele momento, enquanto um sinal vermelho impedia a passagem de vivos e mortos, os contrastes entre a nudez do dia-a-dia e os mistérios da morte tomaram a minha mente. Com um olho no semáforo e o outro no caixão, pensei sobre a minha própria vida, a provável vida daquele que estava no caixão e os caminhos, ou descaminhos, que o levaram a parar naquele cruzamento. Entretanto, ainda sob a ordem colorida de permanecer parado e em meio a pensamentos sobre o a vida e os seus trânsitos, logo a minha atenção voltou-se ao carro que estava parado atrás do veículo funerário. Era um carro pequeno, estava quase ao meu lado. Nele, ao lado do seu motorista, encontrava-se uma jovem entristecida que, moderadamente, deixava algumas lágrimas escorrerem pelo rosto. Não precisei mais do que brevíssimos instantes para notar que todos os ângulos do seu rosto eram perfeitos. Ela era linda. Seus olhos, claros e mareados, oscilavam entre alguns momentos fechados, consternados, e o olhar direcionado ao veículo funerário posicionado a sua frente. Nesses instantes, instantes em que seu olhar direcionava-se ao caixão, a sua dor era visível e, sua beleza, inquestionável. Confesso que, após avistá-la, nada mais ao meu redor chamou-me a atenção: a partir daquele momento, toda a minha sensibilidade voltou-se para a percepção e a compreensão daqueles extremos que, para mim, sintetizavam a experiência humana – a vida, a beleza, a dor e a morte. Tomado por pensamentos e sentimentos irresistíveis, continuei a observá-la até o momento em que o trânsito obrigou-me a colocar-me em movimento. Quando passei pelo semáforo, não mais senti que estava apenas dirigindo e prosseguindo com a minha vida – alguma coisa mudara em mim, e a um morto, e a uma bela, eu passara a ser eternamente agradecido.

4 comentários:

Anônimo disse...

E como dizia Florbela Espanca:

“Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
(...)”

Alma de artista!... Parabéns Léo. Continue escrevendo.

N. Moscardi disse...

Devo admitir que de algum (estranho) modo, esse texto me fez rir. Mas gostei do contraste entre todos os sentimentos e fatos concretos que passaram por você.

Parabéns :)

Anônimo disse...

Não conhecia esse seu lado escritor! A propósito, ÓTIMO escritor. ;)

Acho que eu deveria, mas não estou surpresa com sua habilidade para escrever. De certa forma, mesmo com o pouco que te conheço, já era de se esperar! x)

Gostei muito de todos os versos, espaços, linhas, letras e pontos.. ;) Confesso que de uns mais do que de outros, mas todos merecem grande admiração! ;)

Parabéns pelo talento Léo!
Continuarei vindo aqui com frequência :)
Beijos, Ferr

Anônimo disse...

Léo... eu já tive muito contato com suas palavras... meu pai desde sempre lhe chamou de "escritor". Mas posso assegurar, vc está cada vez melhor...
Espero continuar lendo vc sempre!