23 de abril de 2008

Fecha os olhos

- Fecha os olhos, pensa e dize-me o que vem ao teu pensamento.
A ordem, apesar de estranha, soara-lhe sedutora. Gostava de trancar-se em seus próprios pensamentos e de senti-los. Tinha uma imensa facilidade em assim agir e, na verdade, difícil era saber o que era realidade e o que era fantasia em sua vida.
- Dize-me o que pensas. Dize-me.
- (silêncio)
- Dize-me o que pensas, conta-me o que enxergas quando fechas os olhos e o que vês em pensamento.
- (silêncio)
Não queria falar. Aceitara a proposta, a levara a sério, não encontrara dificuldade alguma em mudar-se para dentro de si, em desligar-se de tudo que o rodeava e reclamava a sua atenção, mas não queria falar. Deitado no divã como em uma cama já conhecida, não dava o menor sinal de por onde andava a sua imaginação.
- Dize-me...o que pensas? O que estás a pensar?
- (silêncio)
A sua vida inteira tinha lutado contra os pensamentos que, agora, pediam-lhe para revelar. Tinha desistido de lutar sozinho contra aquelas idéias e, exatamente por isso, resolvera procurar ajuda. Contudo, nunca imaginara que a primeira coisa que lhe pediriam fosse: “fecha os olhos, pensa e dize-me o que vem ao teu pensamento”. Não sabia o que fazer. A consciência do caráter reprovável das suas idéias estava em conflito com as sensações de prazer que elas lhe provocavam. Não sabia o que fazer, não sabia o que falar e sofria por não conseguir controlar os pensamentos que, apesar de condenáveis, causavam-lhe prazer. Também não entendia como podia gostar de imaginar-se fazendo o que qualquer pessoa, e ele mesmo, sabia ser censurável. Resolvera, então, procurar ajuda quando sentiu que estava prestes a tornar realidade o que, antes, era apenas imaginação. Há alguns dias começara a sentir-se tentado, efetivamente, a experimentar o que há muito aparecia em sua cabeça apenas como possibilidade. Estava prestes, na iminência – uma iminência que o jogara em uma crise de consciência sem precedentes em sua vida. Agora encontrava-se ali, deitado, com os olhos fechados e instigado a falar sobre aquilo que procurara ajuda para evitar. Deveria falar, deveria entregar-se?, pensava, em meio a outros pensamentos, enquanto, com insistência, sua analista lhe pedia:
- Dize-me o que te afliges e que te trouxeste até a mim. Não tenhas medo. Sabes que estou aqui apenas para te ajudar. Não te julgarei e nem te reprovarei. Preciso apenas te conhecer. O que acontece em teus pensamentos? O que vês quando os olhos fechas e começas a pensar?
- (silêncio)
Com os olhos fechados, aceitara a sugestão de imaginar todas aquelas coisas abomináveis. No entanto, de repente, um outro pensamento começou a lhe chamar a atenção: encontrava-se, agora, sob a influência de uma especialista em pensamentos – como poderia, então, mostrar-lhe o que pensava? Não estaria, assim, tornando-se vulnerável a uma pessoa com poderes para penetrar-lhe até à alma? Não estaria, desta forma, favorecendo a possibilidade de enxergarem-no como louco, doente e abjeto? Demorou-se em tais idéias até o momento em que concluiu que não deveria falar. Manteve os olhos fechados e, frente aos pedidos que lhe chegavam aos ouvidos – “vamos, dize-me, o que trazes na alma?” –, resolvera continuar calado como desde o início. Seria o único a saber o que pensava – e a sofrer, ou a ter prazer, com aquelas idéias que estava na iminência de colocar em prática. Quem sabe as colocasse e quem sabe as revelasse ao colocá-las em prática. Quem sabe.
- Vamos, dize-me, o que pensas agora?
- (silêncio)
Silêncio.

Um comentário:

N. Moscardi disse...

Adorei o texto. Foi escrito muitíssimo bem, com a exatidão que eu gostaria de ter nos meus. =)
Excelente !


Ah, antes que eu passe por completamente anônima aqui: eu tenho aulas suas no Nacional, de manhã, no pré vestibular. Peço desculpas por não chegar pessoalmente pra te abordar, mas enfim...cheguei aqui !

Até mais, professor =)